COP16: das línguas à espiritualidade, como a cultura indígena apresenta uma outra forma de proteger a biodiversidade

Na COP16 de Biodiversidade, as partes aprovaram a criação do órgão subsidiário permanente do Artigo 8 (j) e incluíram nos documentos relacionados a essencialidade de aspectos culturais, espirituais e holísticos para a conservação e preservação da natureza.

Com a aprovação histórica do órgão subsidiário permanente do Artigo 8 (j) na COP16 de Biodiversidade, o conhecimento e a tradição indígena conquistam espaço na mesa de discussões. Entre 195 países e a União Europeia, o órgão irá defender os interesses indígenas e, principalmente, os da natureza.

Dentro das discussões sobre a aplicação do Artigo 8 (j), as partes consideraram aspectos que até então não eram oficialmente incluídos nos debates sobre conservação e preservação ambiental: a cultura, a espiritualidade e a visão holística dos povos indígenas no cuidado com a natureza.

Povos indígenas comemoram aprovação do órgão subsidiário do Artigo 8j) durante a plenária de encerramento da COP16 de Biodiversidade, no dia 1º de novembro de 2024. Crédito: Divulgação/UN Biodiversity

Há dois documentos dos grupos de trabalho da COP16 que tratam com mais detalhes sobre os tópicos. Um deles é o documento L.14, sobre o “papel das línguas na transmissão intergeracional de conhecimentos tradicionais, inovações e práticas”.

Nele, entende-se que as línguas indígenas precisam ser preservadas para garantir que os conhecimentos tradicionais sejam repassados. Para isso, incentiva-se as partes a conservar e revitalizar as línguas dos povos indígenas e comunidades locais, “inclusive por meio de medidas concretas, como o apoio a iniciativas comunitárias de promoção cultural e centros de recursos e escolas de campo”. 

De acordo com o Censo Escolar do Brasil, 3.597 escolas de ensino básico oferecem educação indígena, ou seja, ministram conteúdos específicos e diferenciados de acordo com aspectos etnoculturais.

Somente no Brasil, existem 274 línguas indígenas faladas por 305 diferentes etnias, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Considerando toda a América Latina, o número cresce para cerca de 560 línguas indígenas. Segundo o Atlas Sociolinguístico de Povos Indígenas na América Latina, publicado em 2009, 111 idiomas originários estão em “altíssima vulnerabilidade” ou “seriamente ameaçados”. 

Só na região amazônica, são 40 idiomas ameaçados. Entre eles, o warao — os indígenas Warao da Venezuela fazem parte dos mais de 53 mil venezuelanos que chegaram ao Brasil como refugiados entre 2010 e 2022. O dado é do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).

Em Fortaleza (Ceará), indígenas Warao refugiados da Venezuela lutam diariamente para sobreviver e manter viva a cultura e a tradição. Idioma warao é um dos ameaçados de extinção, de acordo com Atlas. Crédito: Fernanda Barros/O POVO

Já o documento L.5 trata sobre o programa de trabalho até 2030 para o Artigo 8 (j). Nele, o grupo de trabalho reconhece que há necessidade de um plano de trabalho mais “holístico”: “Uma abordagem holística deve ser adotada de acordo com os valores espirituais e culturais e a práticas consuetudinárias dos povos indígenas e comunidades locais, reconhecendo todas suas relações, incluindo as relações que mantêm com seus territórios, terras e recursos”.

O programa indica também que “os conhecimentos tradicionais, as tradições, as inovações, as práticas e as tecnologias dos povos indígenas e das comunidades locais deverão ser valorizados e considerados essenciais, e deverão estender-se a eles o mesmo respeito e consideração que a outras formas de conhecimento”.

O que significa considerar os aspectos espirituais da biodiversidade?

Na prática, significa analisar os impactos na biodiversidade além da cautela científica, também respeitando a dimensão espiritual, parte da cultura indígena. Na primeira semana da COP16, uma coletiva de imprensa discutiu sobre árvores geneticamente modificadas (GM) e exigiu que o Brasil retirasse a aprovação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para a comercialização de nove eucaliptos geneticamente modificados até antes da COP30 pelo Clima, a ser realizada na cidade de Belém.

O Brasil é o primeiro país da América Latina a aprovar árvores GM. A geneticista molecular Ricarda Steinbrecher lembra que um documento de 2008 da CDB recomenda uma “abordagem cautelosa” sobre as árvores geneticamente modificadas e afirma que faltam estudos sobre o impacto a longo prazo dessas árvores. “Porque não temos respostas (sobre o impacto), os riscos devem ser considerados muito altos”, explica.

Acampamento indígena em plantação de eucalipto da Aracruz Celulose, no Espírito Santo. Crédito: Valter Campanato / Agência Brasil

Esse é o ponto de vista da ciência. Há, no entanto, outra maneira de abordar o problema, como apontado na coletiva pelo líder indígena Tom B. K. Goldtooth, diretor-executivo da Indigenous Environmental Network: “Nós vivemos um sistema que não sabe como quantificar as dimensões espirituais da floresta”. 

Segundo ele, valorizar e incluir o conhecimento indígena nas decisões é levar em consideração mesmo aqueles aspectos que não podem ser mensurados pela ciência ocidental. Isso exige precaução e uma mudança da “mentalidade colonialista e do conhecimento predatório sobre a posse das terras”.

Na análise da filósofa Alyne Costa, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisadora de filosofia e meio ambiente, “tudo está sendo de certa forma aludido (nos documentos), mas não muito bem vinculado, no sentido de compromisso. De estabelecer que se eles falam ‘aqui não pode entrar, aqui é território sagrado’, então não é para entrar. Essa deveria ser nossa posição”, reflete. “E aí vemos outras abordagens, até que a gente consiga encontrar o meio termo, que não seja tão predatório”.

“Nós não seremos capazes de reproduzir efetivamente o que são essas relações para eles, mas talvez atentar para a maneira como eles respeitam esses espíritos inspire na gente uma certa arte da atenção”, destaca a pesquisadora. “Talvez seja importante para que a gente saia só do respeito. Porque no frigir dos ovos, o respeito acaba. Você diz que respeita, mas vai continuar explorando o petróleo e destruindo a floresta em nome de um bem maior que seria esse desenvolvimento econômico. Então eu iria por aí: como é que a gente cria mecanismos para se sensibilizar diante da divergência desses modos de vida? Sem precisar imitá-los, mas sem precisar esperar traduzir tudo o que eles têm”.

Como os países da América Latina abordam o assunto nos NBSAPs

Entre os 20 países da América Latina, 19 levam em consideração os povos indígenas nas Estratégias e Planos de Ação Nacionais de Biodiversidade (NBSAPs, na sigla em inglês). Cuba é o único país sem menção direta — grande parte das comunidades indígenas do arquipélago foram extintas durante a colonização espanhola. Há, no entanto, menção aos conhecimentos das comunidades locais.

Apenas seis países (Argentina, Colômbia, Cuba, México, Peru e Venezuela) atualizaram seus NBSAPs para adequá-los ao Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal. Percebe-se que, quão mais desatualizadas as estratégias, menor é a amplitude das abordagens sobre os povos indígenas.

Na Argentina, por exemplo, uma das metas nacionais é expandir a identificação de Áreas de Importância para a Biodiversidade (AIBs). Dos 11 trabalhos nacionais dedicados a esse rastreio, 27% deles são baseados em critérios bioculturais, o que motivou o país a incorporar à meta “maior quantidade de critérios bioculturais, tais como a diversidade de línguas, a presença de sítios arqueológicos” e a “valorização de lugares de importância histórica e espiritual para os povos indígenas”, “a fim de visualizar a estreita conexão entre diversidade biológica e cultural”. 

Ainda, nos eixos transversais para a “abordagem integrada da biodiversidade” almejada pela Argentina está o diálogo de saberes, entre eles os saberes ancestrais de transmissão oral. Mas não há um plano explicitamente ou diretamente focado na preservação das línguas ou da cultura indígena. 

Abertura da Zona Verde destacou a biodiversidade cultural da Colômbia. Crédito: Divulgação/UN Biodiversity

O Peru também usa o termo patrimônio biocultural e aponta que a ênfase do NBSAP na “justiça, equidade territorial e intercultural” vem da cosmovisão indígena que “considera a Mãe Natureza não somente como um recurso, mas como um ser vivente com o qual devem manter uma relação espiritual”. Um dos objetivos é traduzir guias e documentos para as línguas originárias e, assim, impulsionar o impacto das publicações.

“A guia sobre distribuição dos benefícios derivados do uso dos conhecimentos coletivos publicada pelo Indecopi é um documento simples e adaptado às comunidades locais, mas escrito em espanhol. Não foi traduzido a línguas originárias, razão pela qual o impacto da publicação é muito fraco”, exemplifica o país no NBSAP.

A Colômbia traz uma meta específica para o “fortalecimento das estratégias de formação formal, informal, popular e comunicação sobre biodiversidade e cultural (línguas originárias) do território”, por intermédio dos ministérios de Educação e Cultura. A proposta é incorporar as línguas nativas no processo de transmissão de informações. 

Dentro das soluções financeiras, o país que foi sede da COP16 de Biodiversidade prevê pagamentos por serviços ambientais e fundos comunitários para financiar projetos “culturais, espirituais e de recreação” associados a serviços ecossistêmicos.

No Brasil, um dos pilares do NBSAP é a “a manutenção da diversidade cultural nacional”, considerada importante para a “para pluralidade de valores na sociedade em relação à biodiversidade”. Com o NBSAP desatualizado, o país não menciona planos diretos para a preservação e valorização de línguas indígenas e outros aspectos espirituais. As ações brasileiras em conjunto aos povos indígenas estão interligadas principalmente aos conhecimentos tradicionais de manejo da terra e à importância dos territórios indígenas (TI) para a preservação dos biomas.

Reconhecimento é avanço, mas caminho para maior inclusão dos aspectos é longo

Em outra decisão histórica da COP16 de Biodiversidade, os povos afrodescendentes, como os quilombolas, foram incluídos no texto da Convenção de Diversidade Biológica (CDB), não sem embates entre as partes, como a União Europeia.

Afrodescendentes também conquistaram reconhecimento no texto da CDB. Crédito: Divulgação/UN Biodiversity

Na América Latina, a relação dos povos afrodescendentes com a natureza, assim como a dos dos povos indígenas, está ligada à cultura e à espiritualidade. O candomblé, religião de matriz africana, e a umbanda, religião afro-brasileira, têm uma forte relação com os elementos da natureza, especialmente plantas e ervas, às quais atribuem poderes de cura espiritual. “Eu [oriento] uma aluna que está pesquisando sobre o conceito de natureza no Candomblé e ela fala que o orixá é a folha, a folha é o orixá. Então, sem folha não tem orixá, sem mata, sem biodiversidade, sem o conhecimento das ervas, não há mundo espiritual nas religiões de matriz africana”, explica Costa.

A pesquisadora reforça que, apesar do sucesso no reconhecimento, é necessário evitar a sensação de “conformismo”, “Meu medo é o da neutralização, que o mero fato de ser mencionado de certa forma pacifique a sociedade. Por um lado, é importante porque abre espaço para a reivindicação. Como sociedade, nós temos que cobrar. Ok, vocês colocaram aqui tratar os modos de vida e a espiritualidade outra que ocidental no mesmo grau de importância com conhecimento… Como é que vocês vão fazer isso? Vocês vão dar recurso, vocês vão dar espaço? Essa é a questão: que a gente não se conforme”.

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