Mercado regulado de carbono aprovado no Brasil pode acelerar descarbonização das indústrias

Depois de mais de um ano de debate, foi sancionada a lei que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões, regulando o chamado mercado de carbono. A sanção veio algumas semanas depois da aprovação das regras para o mercado de carbono global, operado pelas Nações Unidas. As normas do mercado regulado brasileiro ainda serão discutidas.

Em novembro de 2024, a indústria brasileira ganhou um novo ator no cenário da descarbonização: os mercados regulados de carbono. Após quase 16 meses de debates, foi sancionada a Lei 15.042, que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), previsto na Política Nacional sobre a Mudança do Clima desde 2009. 

O anúncio veio nas semanas seguintes à aprovação das regras para o mercado de carbono global na COP29, a conferência do clima das Nações Unidas que aconteceu em Baku, Azerbaijão. O mecanismo está previsto no Artigo 6 do Acordo de Paris.

Com a nova lei, empresas e indústrias passam a ter um teto de emissões. No modelo, se uma empresa emite menos do que o teto isso passa a ser considerado um “crédito” de carbono que, a depender do regulamento, será passível de comercialização. Já as que emitem mais precisarão reduzir ou comprar créditos. 

O SBCE passa a classificar o mercado de crédito de carbono no Brasil em dois segmentos: regulado e voluntário. Para o segmento regulado, o texto propõe a criação de um órgão para estabelecer normas e aplicar sanções às entidades sujeitas à sua supervisão – tanto iniciativas governamentais quanto organizações, como empresas, que emitam mais de 10 mil toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2e) anualmente.

Recém aprovados, esses mercados terão metas de redução estabelecidas pelo Estado, que serão compulsórias para setores de alto carbono da indústria. “O Brasil agora se une aos cerca de 80 mercados regulados de carbono que existem hoje no mundo”, diz Juliana Coelho Marcussi, consultora sênior em Mercados de Carbono da organização de advogados de mudanças climáticas na América Latina LACLIMA

Lei que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões é votada no senado federal. Foto: Pedro Gontijo - Senado

Eles se diferem dos mercados voluntários que já vinham funcionando no Brasil desprovidos de regras ou limites legais, o que resultou em processos marcados por ameaças à vegetação nativa e violações de direitos humanos de comunidades tradicionais. 

“Muitas das críticas acerca dos mercados de carbono, incluindo a que diz que ele autoriza a continuação de emissões, na verdade dizem respeito aos mercados voluntários”, diz Caio Victor Vieira, especialista em articulação política do Instituto Talanoa.  

“Eles colocam um preço nas emissões. É como se o Estado dissesse: ‘não dá para você, empresa, continuar emitindo desta forma. Ou você diminui as emissões, ou vai pagar pelo mal que está causando a todo mundo’”, diz Vieira. 

No caso brasileiro, o mecanismo central é o chamado cap and trade (limite e comércio, em tradução livre), no qual o estado estabelece um teto de carbono por setor, como uma espécie de licença para emissões de gases do efeito estufa (GEE) até se chegar a um volume máximo. 

Atividades industriais que emitam mais de 10 mil toneladas de dióxido de carbono equivalente por ano deverão monitorar e relatar suas emissões. Aquelas que ultrapassem a marca das 25 mil toneladas serão reguladas, devendo diminuir suas emissões ou compensar.

Segundo Marcussi, não se trata de uma simples relação de compra e venda de créditos, mas sim de uma limitação de emissões para setores considerados carbono intensivos, de acordo com suas características operacionais. 

Um órgão gestor, cuja composição ainda não foi definida, irá determinar não só a quantidade de créditos de carbono a serem emitidos, como também sua precificação. “Com o passar do tempo, a ideia é limitar inclusive o número de ativos a ser transacionáveis, de modo que se consiga, em escala, reduzir a pegada de carbono das atividades que vão ser reguladas”, explica Ciro Brito, analista sênior de Políticas do Clima no Instituto Socioambiental (ISA).

A lei também traz salvaguardas para indígenas e comunidades tradicionais. Um ponto é a consulta livre, prévia e informada para desenvolvimento de projetos, em acordo com a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. Outro é a inclusão obrigatória de uma cláusula nos contratos de projetos em terras tradicionalmente ocupadas por essas populações que garanta o direito sobre pelo menos 50% dos créditos de carbono e seus benefícios monetários. 

“Essa porcentagem mínima é uma forma de tentar alcançar uma repartição justa e equitativa dos benefícios”, diz Brito. 

A isso, Marcussi acrescenta que o propósito dos mercados de carbono regulados não é geração de lucro, mas sim tornar medidas de mitigação de emissões mais custo-efetivas. Nesse sentido, os recursos levantados serão direcionados à manutenção do SBCE (15%), ao Fundo Nacional Sobre Mudança do Clima (75%) e aos povos indígenas e comunidades tradicionais, como compensação por seus serviços ecossistêmicos (mínimo 5%).

O texto aprovado, contudo, ainda deixa muitos pontos em aberto, da governança do SBCE, aos setores a serem regulados. As estruturas e regras serão definidas por meio do Plano Nacional de Alocação, ao longo dos próximos dois anos. Essa é a primeira de cinco fases, a ser seguida pela implementação dos instrumentos de medição, apresentações dos planos de monitoramento e relatos de emissões, implementação do mercado de ativos e, finalmente, a implementação plena do SCBE. 

O ponto mais polêmico e criticado foi a exclusão da agropecuária do texto. Esse é o segundo setor que mais emite no Brasil (25% do total), atrás apenas de “mudança do uso do solo”, que também é em grande parte impactado pelo agronegócio. Uma das justificativas para isso foi que “nenhum mercado regulado de carbono quantifica o setor”, mas Brito explica que o Brasil é o primeiro país com esse perfil de emissões a adotar o mecanismo, e portanto sua importância (em nível de emissões) deveria ter sido observada. 

Não inclusão do agronegócio é o principal ponto de crítica da nova legislação. Foto: Divulgação Palácio do Planalto

Já em relação à suposta falta de metodologias para medir com precisão as emissões do agro, Marcussi acredita ser provável que as tecnologias se desenvolvam o suficiente nos próximos anos até a implementação do mercado regulado. “Além disso, a ideia é que o escopo desse mercado vá aumentando com os anos para abarcar cada vez mais setores e ser cada vez mais eficiente”, diz. 

Contudo, ao mesmo tempo que não contabiliza ou exige que diminuam as emissões, a lei deixa em aberto a possibilidade de que proprietários agrícolas ganhem dinheiro com projetos de carbono tanto em áreas que já são legalmente obrigados a preservar, quanto em áreas que tenham sido desmatadas ilegalmente. 

Uma nova indústria, mais forte e mais verde

Marcussi defende a importância do mecanismo, considerando que “é utópico falar em desindustrialização da economia global”, diz. “Temos hoje uma indústria e um sistema capitalista que precisam ser repaginados com urgência e, para isso, precisamos ser realistas”, defende. 

Depois de décadas marcadas por um processo de desindustrialização, o Brasil voltou a priorizar investimentos na indústria. “O que o governo quer é que tanto a indústria que já existe, quanto aquela que venha a se instalar no Brasil, seja uma indústria verde”, diz Brito.

Tanto o governo, quanto agentes da indústria, já entenderam que é preciso internalizar em seus planejamentos estratégicos riscos relacionados às mudanças climáticas, que vão desde os danos a equipamentos até a interrupção de fornecimento de matérias primas e o comprometimento da saúde dos trabalhadores.  

Também já entenderam que isso abre um leque de oportunidades. “A agenda de descarbonização é um diferencial do Brasil. Além de maior competitividade, temos uma melhoria na imagem da indústria brasileira e oportunidade de acessar novos mercados, especialmente no âmbito internacional”, diz Davi Bomtempo, superintendente de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Nós agora somos a bola da vez: não só temos a condição de pegar esse trem, mas de nos sentarmos nos primeiros vagões”. 

Desde 2023, o governo vem implementando uma série de programas e políticas que estimulam a transformação da indústria nacional.  Dentre elas estão a Nova Indústria Brasil, que tem como uma de suas missões desenvolver a bioeconomia e a transição energética e prevê um investimento de R$ 300 bilhões até 2026, e o Programa Selo Verde Brasil, um programa voluntário de normalização e certificação de produtos e serviços.

Mas a transição não será simples. “Existem obstáculos relacionados à capacitação profissional para as novas atividades e a como essa nova economia poderá absorver a mão de obra qualificada de outros setores”, diz Bomtempo.  Além disso, segundo um estudo da CNI, serão necessários aproximadamente R$ 40 bilhões em investimentos até 2050 para descarbonizar a indústria brasileira.

É aí que o mercado regulado de carbono pode ter um papel crucial. Ao premiar empresas e setores que reduzirem suas emissões e penalizar aqueles que não o fizerem, o mecanismo incentiva a descarbonização da economia. O Brasil tem o potencial de gerar até 15% da oferta mundial de créditos de carbono, podendo alcançar uma arrecadação de mais de R$ 100 bilhões. Além disso, espera-se que a nova lei também proteja produtos nacionais de eventuais taxas cobradas sobre exportações como no caso do mecanismo de ajuste de fronteira de carbono da União Europeia. 

Para a CNI, a agenda de descarbonização pode ser um diferencial para a indústria brasileira. Foto: Marcelo Camargos / Agência Brasil

Para efetividade do mecanismo, emissões devem “pesar no bolso” das empresas

O mercado de carbono deve ter um papel relevante em ajudar o país com a descarbonização, compromisso assumido com o Acordo de Paris. A criação do SBCE é um dos compromissos citados na NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) brasileira, entregue em novembro de 2024, durante a COP29. “Nos espaços multilaterais, quem se compromete com essas metas são os estados partes, que não são os maiores emissores globais de gases do efeito estufa. Então, eles precisam promover mecanismos para envolver as suas empresas”, diz Brito. 

Para Vieira, a maneira mais efetiva é “pesando no bolso”. “Os créditos de carbono obrigatórios precisam ser muito caros para incentivar a descarbonização. Se eles não forem, muitas empresas podem optar por continuar pagando por eles ao invés de fazer as mudanças necessárias”, explica. 

A lei não exclui os créditos voluntários de carbono, que não apenas continuarão existindo, como poderão ser parcialmente incorporados pelo mercado regulado, Vieira defende a necessidade de se delimitar uma cota máxima. “Caso contrário, eles podem inundar o sistema e pressionar o preço para baixo. E isso não pode acontecer”, diz. 

Vieira explica que, dessa forma, o custo adicional dos produtos provenientes de empresas que não se descarbonizarem fará com que os mesmos deixem de ser competitivos a nível de mercado, aumentando o incentivo econômico para a transição. Além disso, aquelas companhias que conseguirem reduzir suas emissões terão ainda a chance de vender seus créditos de carbono, gerando lucro para além de suas atividades principais. 

Ao mesmo tempo, Brito explica que a lei que regula o mercado de carbono também pretende evitar um choque inflacionário que termine por penalizar as populações mais vulneráveis. “A regulação vem para tentar diminuir ao máximo o custo social.  Mas sabemos que a razão de existir das empresas é o lucro”, diz. 

Assim, é preciso pensar em instrumentos financeiros que estimulem as indústrias a se descarbonizar. “A questão é como equilibrar a descarbonização com a competitividade, estando vigilantes para não destruir as empresas”, diz Bomtempo.

Nesse contexto, ele destaca que, para micro e pequenas empresas, a descarbonização é um processo ainda mais custoso. “É preciso desenvolver estratégias melhores de estímulo e acesso aos mecanismos por parte dessas empresas”, diz. 

Sozinho, contudo, o mercado regulado de carbono não soluciona o problema do excesso de emissões de GEE. Especialmente no caso do Brasil, que projeta aumentar sua produção de petróleo e gás em 36% até 2035. “Não adianta zerar o desmatamento e adaptar as infraestruturas do país inteiro se continuarmos queimando petróleo normalmente”, diz Vieira. 

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