Febre do lítio avança para Amazônia e afeta 21 áreas protegidas

Busca pelo mineral estratégico para a indústria da tecnologia impulsiona pesquisa na Amazônia Legal; dos 53 processos ativos, 29 estão a menos de 10 km de terras indígenas, unidades de conservação e assentamentos da reforma agrária

Por Isabel Harari | Edição Diego Junqueira

A FEBRE DO LÍTIO no Brasil está se expandindo para a Amazônia Legal, região que abriga o maior número de povos tradicionais e florestas nativas preservadas do país. Os pedidos para explorar o minério, usado na indústria da tecnologia, bateram recorde nos últimos quatro anos e podem causar impactos em ao menos 21 áreas protegidas, entre terras indígenas, unidades de conservação e assentamentos da reforma agrária

O Brasil tem o décimo maior depósito de lítio do mundo, estimado em 1,3 milhão de toneladas, sendo 390 mil toneladas economicamente viáveis, de acordo com o Serviço Geológico dos Estados Unidos. Os números, no entanto, podem estar subestimados, já que o subsolo brasileiro ainda está sendo mapeado

Por enquanto, existem 53 requerimentos na Amazônia Legal dos quais 48 (90%) foram registrados a partir de 2022, segundo dados levantados pela Repórter Brasil na base de dados pública da ANM (Agência Nacional de Mineração). Especialistas ouvidos pela reportagem alertam para o risco de que a extração do lítio avance de maneira desenfreada e intensifique os conflitos socioambientais na Amazônia.

O lítio é considerado estratégico para a transição energética, principalmente no uso em baterias de veículos elétricos e para armazenar em grande escala a eletricidade gerada por painéis solares e turbinas eólicas. Esses dois setores, transporte e geração de energia elétrica, são os que mais emitem gases de efeito estufa no planeta. 

Isso tem impulsionado a busca pelo lítio no Brasil: são 4,4 mil processos minerários ativos protocolados desde 1943, sendo 3,9 mil a partir de 2022, segundo a base de dados.

Uma das preocupações é a proximidade dos processos minerários com  áreas protegidas. Dos 53 requerimentos na Amazônia Legal, mais da metade (29) está sobreposta ou a menos de 10 quilômetros de 21 territórios, sendo cinco terras indígenas, oito unidades de conservação e oito assentamentos da reforma agrária. 

Destes 29 pedidos, 18 estão com a pesquisa autorizada pela ANM, etapa que já envolve trabalho de campo, com possíveis consequências para esses territórios. Muitas vezes, as empresas sequer fazem contato com as comunidades atingidas.

Esses são os achados de uma investigação da Repórter Brasil, com apoio da Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center. A publicação faz parte do “Lítio em conflito”, projeto liderado pelo CLIP (Centro Latinoamericano de Investigación Periodística), que reuniu dez veículos para entender os conflitos em torno da indústria desse minério na América Latina.

APA Lago de Peixe/Angical, no sul do Tocantins, está cercada por 12 requerimentos para exploração de lítio e é a mais afetada da Amazônia (Imagem cedida por Josevan Barbosa)

Exploração do lítio pode agravar crise ambiental que o minério em tese ajudaria a resolver

“Existe uma disputa bastante violenta por recursos estratégicos na Amazônia [como lítio, níquel e terras raras]”, analisa a socióloga e geógrafa Elaine Santos, pós-doutora pelo IEA (Instituto de Estudos Avançados), da Universidade de São Paulo. “A ampliação da exploração mineral ali certamente vai provocar o aumento dos conflitos”, alerta.

“O aumento de requerimentos para um mineral específico é preocupante. O lítio é essencial para a transição energética, mas seu avanço acontece sem a devida avaliação dos custos sociais e ambientais”, pondera Pedro Igor Galvão Gomes, mestrando em Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Tocantins e bolsista do Rights Lab da Universidade de Nottingham, no Reino Unido.

A legislação ambiental não proíbe atividades minerárias a menos de 10 km de terras indígenas, mas considera que as áreas são afetadas a essa distância. Por essa razão, exige estudos de impacto e consulta prévia às comunidades, assim como previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário. 

“A devastação vai para dentro das terras indígenas, por mais que o empreendimento fique a 10 quilômetros”, opina Alcebias Sapará, coordenador da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). 

As unidades de conservação também possuem uma zona de amortecimento de proteção e demandam estudos específicos antes da exploração. No caso dos assentamentos, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) deve ser acionado para definir medidas compensatórias, em razão dos impactos à política de reforma agrária. 

Em Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha foi batizado de Vale do Lítio pelo governo mineiro em razão do seu potencial minerário (Foto: Divulgação/Ana Torres/Governo de MG)

Esse recente aumento nos pedidos de exploração na Amazônia faz parte do que a pesquisadora norte-americana Thea Riofrancos chama de “expansão das fronteiras extrativistas” em seu livro recém-publicado “Extraction: the frontiers of green capitalism”, sobre o boom global do lítio. 

“Se o desmatamento das florestas tropicais é a segunda maior causa das mudanças climáticas, depois da queima de combustíveis fósseis, e a construção de uma mina pode causar desmatamento, você pode acabar contribuindo para as mudanças climáticas que, segundo você, as baterias de lítio estão resolvendo”, disse em entrevista à aliança jornalística.

No Brasil, o avanço acelerado da exploração de minerais críticos já afeta 45 povos indígenas isolados, conforme mostrou a Repórter Brasil na semana passada.

No caso do lítio, alguns processos minerários estão localizados inclusive em áreas onde ainda não há constatação oficial da presença de lítio, como os estados de Roraima, Amazonas e Pará.

“Nem todo mundo que pede autorização de pesquisa pretende explorar a área. Isso resulta na comercialização dos direitos minerários e em especulação”, explica Elaine Santos.

Mapa: Rodrigo Bento/Repórter Brasil

Exploração de lítio causa danos no Vale do Jequitinhonha

O minério é encontrado no país em rochas de origem vulcânica, conhecidas como pegmatitos. É diferente da extração feita por países vizinhos, como Argentina, Bolívia e Chile, onde a atividade acontece em piscinas de salmoura no alto dos Andes. 

O maior produtor é Minas Gerais, sobretudo no Vale do Jequitinhonha, rebatizado de “Vale de Lítio” pelo governo mineiro. Mas são os problemas causados pela mineração o que mais chama a atenção de moradores e especialistas. O lítio transformou a paisagem e impactou o modo de vida dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

“Tudo mudou. O rio acabou, a água está contaminada”, relata um indígena, que pediu para não ser identificado por questões de segurança. 

“O nosso território se tornou uma zona de sacrifício em nome da dita transição energética”, lamenta a historiadora Lauanda Lopes, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Desde 2024 ela faz parte do Liquit, que pesquisa os efeitos da mineração de lítio no Vale do Jequitinhonha.

Entre os principais impactos estão a dificuldade de acesso à água, a contaminação de rios, o aumento da poeira e de doenças respiratórias, além de rachaduras nas casas, atribuídas aos tremores provocados pelas mineradoras.  

“O atual modelo de exploração de lítio no Vale do Jequitinhonha perpetua um ciclo histórico de exclusão social, degradação ambiental e negação da população tradicional”, conclui um parecer do Ministério Público Federal de Minas Gerais, ao qual a Repórter Brasil teve acesso.

“Se acontecer na Amazônia o que está acontecendo no Vale do Jequitinhonha, vamos ter uma situação futura de falta de água, aumento dos conflitos e desrespeito aos direitos das comunidades locais”, diz Lopes, da UFMG.

Gráfico: Rodrigo Bento/Repórter Brasil

Mineradora Atlas reconhece potencial risco de explorar lítio na Amazônia

Ao menos duas mineradoras com operação no Vale do Jequitinhonha estão se movimentando para explorar lítio na Amazônia: a Atlas e a M4E. 

A Atlas Lítio Brasil é uma subsidiária da norte-americana Atlas Lithium Corporation. Entre seus principais acionistas, aparece o conglomerado japonês Mitsui & Co. Ltd, um dos maiores grupos de investimentos do mundo. Outro acionista, e membro do conselho de administração da mineradora, é Roger Noriega, ex-embaixador dos EUA na OEA e ex-secretário-assistente de Estado no governo George W. Bush.

Atuando em Minas Gerais desde 2018, a Atlas afirma ter 797 km² em direitos minerais de lítio,  uma das maiores áreas de exploração de lítio no Brasil. A extração ainda não começou, mas alguns projetos no Jequitinhonha estão em fase avançada, de licenciamento ambiental.

Na Amazônia, a Atlas protocolou três pedidos em 2024 para pesquisar lítio no sul do Tocantins. A ANM ainda avalia os três processos, que não estão próximos de áreas protegidas, segundo o levantamento da Repórter Brasil. Ainda assim, a Atlas reconhece potenciais riscos de operar na região.

No último relatório corporativo, a empresa destaca que as políticas ambientais do Brasil, em especial a preservação da Amazônia, são “continuamente fiscalizadas pela mídia”. Diz ainda que “se o ambiente político, as regulamentações ou as políticas do Brasil forem, ou forem percebidos como, inadequados, desfavoráveis ou hostis por clientes ou investidores estrangeiros, podemos perder o interesse de grupos de investidores ou de potenciais compradores de nossos minerais, o que terá um impacto negativo sobre nós”.

A empresa admite no documento também que comunidades locais e organizações não governamentais podem atrasar seus planos de negócios. Isso é justamente o que vem acontecendo no norte de Minas Gerais.

Em 28 de agosto, a Justiça Federal suspendeu a licença ambiental de um dos projetos da empresa em Araçuaí (MG) por entender que a Atlas não ouviu as comunidades quilombolas diretamente impactadas. 

O juiz do caso afirmou que a concessão da licença ambiental “consolidaria a violação ao direito de consulta prévia”, conforme previsto na Convenção 169 da OIT. O projeto em questão fica a apenas 5,5 km da comunidade quilombola.

Em abril, o MPF já havia alertado para a possível violação de direitos na região de Araçuaí e pediu o cancelamento de uma audiência pública entre a empresa e as comunidades locais. A recomendação do órgão destacava risco de “severa restrição hídrica e de acesso à água para a população regional”. 

Trabalho de campo da mineradora Atlas no norte de Minas Gerais, onde desenvolve vários projetos minerários (Foto: Reprodução/Site da Atlas)

A Atlas ainda não iniciou a exploração comercial no Brasil, mas já firmou parceria para escoar a produção para a chinesa Sichuan Yahua Industrial Group, do grupo Yahua, um dos mais antigos do setor químico da China, conforme relatório apresentado à SEC, órgão que regula o mercado de capitais norte-americano.

O conglomerado atua na produção de explosivos civis e na cadeia global do lítio — da extração ao processamento. A Yahua afirma ter papel central na “energia limpa” e fornece para empresas como Tesla, BYD e CATL, a maior fabricante de baterias do mundo. 

Procurada, a Atlas não respondeu até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto a manifestações.

Território mais afetado na Amazônia, APA Lago de Peixe/Angical é alvo da mineradora M4E

O sul do Tocantins é a região mais procurada para extração de lítio na Amazônia Legal, segundo o levantamento da Repórter Brasil, respondendo por 39 dos 53 requerimentos na porção brasileira do bioma.

Ali fica também a área de proteção ambiental mais impactada pelos processos de lítio, a APA (Área de Proteção Ambiental) Lago de Peixe/Angical, localizada entre os municípios de Paranã, Peixes e São Salvador do Tocantins. 

Criada em 2007 como medida de compensação de uma hidrelétrica instalada no rio Tocantins, a unidade abriga diversos ecossistemas, como áreas de mata ciliar e veredas. É habitat de fauna e flora nativas do Cerrado, algumas delas ameaçadas de extinção, como os peixes pacu-dente-seco, aracu-boca-pra-cima, alguns tipos de bagre e outras espécies. 

APA Lago de Peixe/Angical já é impactada por atividades agropecuárias e pela hidrelétrica instalada no rio Tocantins (Imagem cedida por Josevan Barbosa)

Na APA vivem comunidades tradicionais e pequenos produtores rurais que já convivem com empreendimentos dos setores energético e agropecuário e, agora, veem o avanço da mineração.

A unidade está cercada por 12 requerimentos para exploração de lítio a menos de 10 km de distância, segundo o cruzamento de dados feito pela reportagem. Do total, cinco pedidos foram protocolados em 2023 pela empresa brasileira M4E Lithium Ltda. Os pedidos somam 9,4 mil hectares e já tiveram a pesquisa autorizada pela ANM.

Em seu site, a M4E defende o Brasil como um território favorável à mineração de lítio e diz que o governo, “tanto de partidos de esquerda quanto de direita”, apoia a atividade. A empresa destaca também que o “lítio é o novo petróleo” (“lithium os the new oil”), frase dita pelo bilionário Elon Musk, dono da empresa de veículos elétricos Tesla.

A possibilidade de abrir a APA Lago de Peixe para a mineração de lítio preocupa pesquisadores que atuam na região. “É alarmante”, define Alice Ferreira Araújo, bióloga formada pela Universidade Federal do Tocantins que há 15 anos pesquisa a pesca e impactos socioambientais. 

Ela lembra que a APA já enfrenta pressões por todos os lados “É uma pressão tão grande, tem a agropecuária, as usinas hidrelétricas, as mudanças climáticas, o desmatamento em massa e agora a mineração. Se pensar em conservação, a mineração é quase inviável. Se isso continuar, é mais uma área a ser perdida”.

Além das comunidades afetadas, Araújo se preocupa com os peixes, já que a mineração pode contaminar rios por lixiviação, um processo em que a água dissolve minerais e produtos químicos do solo e os carrega para cursos d’água. “Isso acaba influenciando tanto na cadeia alimentar quanto na reprodução de espécies migratórias”, explica.

Além do sul do Tocantins e do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, a M4E tem requerimentos para explorar lítio em outros cinco estados (Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte), segundo a base de dados da ANM, totalizando 64 pedidos para o minério, apresentados entre 2021 e 2024.

Mesmo sem iniciar a extração comercial de lítio, a M4E já atrai investimentos. Em março de 2024, a empresa recebeu aporte da canadense LRC (Lithium Royalty Corp), que atua na cadeia de baterias para veículos elétricos e tem operações nos Estados Unidos, Argentina, Austrália e Brasil. 

Procurada, a M4E Lithium informou que atua apenas na fase de pesquisa mineral, sem realizar extração, lavra ou possuir qualquer estrutura de mineração no Tocantins. A empresa afirma produzir «estudos de escritório», baseados em análises de dados públicos e imagens de satélite, sem trabalhos de campo. «Esses estudos têm por objetivo avaliar o potencial geológico da região e identificar eventuais restrições ambientais, incluindo áreas sensíveis, como unidades de conservação», diz a nota da companhia (leia a manifestação na íntegra).

Segundo a M4E, caso os estudos indiquem potencial e ausência de restrições ambientais, futuramente poderá solicitar autorizações para «coletas de amostras de rochas», o que, segundo a empresa, não configura atividade de “lavra, mineração ou exploração mineral”. 

A companhia disse manter compromisso com a «transição energética sustentável». «A viabilidade de um depósito de lítio depende tanto de seu potencial geológico quanto de sua compatibilidade socioambiental», finaliza a nota.

A LRC, por sua vez, preferiu não comentar o caso.

Esta investigação teve apoio da Rainforest Investigations Network (RIN), do Pulitzer Center.

Litio en Conflicto

Litio em Conflito é um projeto liderado pelo Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística (CLIP) em parceria com Consenso (Paraguai), La Región (Bolívia), Quinto Elemento Lab (México), Repórter Brasil (Brasil), Ruido (Argentina), Climate Tracker Latam, Dialogue Earth, Mongabay Latam e Columbia Journalism Investigations (CJI), sobre o funcionamento da indústria do lítio na América Latina. Com o apoio da equipe jurídica El Veinte.

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