Embora no Brasil o setor industrial emita menos gases poluentes do que o agronegócio e do que a mudança no uso de terra e florestas (o que inclui desmatamento para o agronegócio e também para a atividade industrial), a poluição do ar é especialmente sentida por populações em locais com alta concentração de indústrias. Na lista das 5 cidades com pior qualidade do ar, de acordo com o ranking do World Air Quality, feito pela IQAir, estão três com grande atividade industrial: Osasco e Guarulhos, em São Paulo, e Camaçari, na Bahia.
Um estudo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), publicado em 2022, mostrou que ao longo de 22 anos a poluição do ar na cidade de São Paulo permaneceu acima do limite apontado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A qualidade do ar impacta diretamente na saúde da população. Uma análise feita pela publicação científica Lancet apontou que, em 2019, a poluição atmosférica contribuiu para seis milhões de mortes.
O médico patologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, Paulo Saldiva, é especialista em poluição atmosférica. Ele ressalta que os prejuízos são graves a longo prazo. “Essa fuligem entra no corpo da gente, se for por muito tempo vai causar uma espécie tatuagem pulmonar. E dali se espalha, uma inflamação crônica e isso faz o nosso tempo biológico correr mais depressa. A poluição do ar tem evidência máxima de causar câncer de pulmão, causando 20% dos casos”.
A história brasileira conta um episódio emblemático de poluição atmosférica industrial. A cidade de Cubatão, no estado de São Paulo, maior polo industrial da América Latina, já foi apontada pela ONU como a cidade mais poluída do mundo na década de 1980, por causa da emissão de componentes químicos pelas fábricas instaladas na região.
Porém, em um esforço de governos e indústria, houve melhoria da eficiência industrial, com ações como determinações para controle dos poluentes e instalação de filtros nas chaminés das fábricas. Em dez anos a situação mudou, e Cubatão foi reconhecida na Conferência Eco-92 como símbolo de recuperação ambiental.
A cidade conseguiu sair do vergonhoso primeiro lugar, mesmo mantendo sua atividade industrial. Atualmente, Cubatão é a nona cidade brasileira com maior nível de poluição do ar. Mas, anos depois, a indústria brasileira não apresenta planos ambiciosos de melhora a curto prazo.
Questão industrial
Mesmo com a evolução da indústria para diminuir as emissões de poluentes, a contaminação ainda é grande.
“Tem setores que já investiram bastante em descarbonização, como por exemplo, o cimento. E tem outros que ainda precisam evoluir. Mas é claro que quando você faz essa avaliação a nível geral, alguns têm mais dificuldade, como a siderurgia, pois são setores que utilizam muito calor para produção do seu produto”, diz Davi Bontempo, gerente-executivo de Meio Ambiente da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
De acordo com Bontempo, para diminuir a poluição é necessário aumentar a eficiência industrial, o que vai implicar em aumento do consumo de energia. Neste caso, ele avalia que o Brasil precisa planejar para ampliar sua capacidade instalada (sem que seja necessário recorrer às usinas térmicas, que utilizam fontes fósseis para produzir energia).
O gerente-executivo pondera ainda que possibilidades de outros tipos de energia para atender a demanda dos campos fabris ainda não estão totalmente desenvolvidas. No caso do hidrogênio verde ainda não há produção nacional e é grande a discussão em torno dos desafios. Já no caso da energia eólica offshore (eletricidade gerada em alto mar, longe da costa) ainda está em discussão a viabilidade financeira, dentre outros pontos.
“Você pode aumentar o grau de eficiência da integração de uma siderúrgica, com novos fornos ou uma nova estrutura de laminação. Mas isso afeta nas centrais de processamento de dados, servidores que são altamente consumidores de energia elétrica. Quanto mais você aumenta a capacidade de automação e de eficiência da sua indústria mais impacta no seu tratamento de dados” diz Venilton Tadini, diretor presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib)
A Agência Internacional de Energia acredita que o consumo de eletricidade do centros de processamento de dados para suprir novas inteligências artificiais podem dobrar até 2026. Atualmente o consumo pode atingir o equivalente a toda energia consumida no Japão.
A maioria dos servidores de dados utilizados pela indústria brasileira estão nos Estados Unidos e na Europa. Isso significa que, em um esforço para se tornarem mais “verdes”, seria necessário que as indústrias brasileiras colocassem na conta essa energia utilizada, já que muitos países que abrigam servidores utilizam fontes fósseis.
Outro desafio para melhorar a tecnologia utilizada nos processos industriais, reduzindo a emissão de poluição atmosférica, é a disponibilidade de semicondutores.
“Existem segmentos onde há uma defasagem tecnológica e é preciso alcançar essa eficiência. Semicondutores é algo que nós somos muito dependentes, mas não só o Brasil.
Não basta ter sua matriz elétrica limpa, se depender da indústria externa para fornecer esses componentes”, observa Tadini.
Durante a pandemia de COVID-19 ficou clara a dependência mundial de países que detém a fabricação dos microchips, como a China. No Brasil, aponta um levantamento da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abnee), 70% da indústria que depende do item enfrentou algum gargalo no processo em 2021, com diminuição da produção ou paralisação parcial na fabricação de seus componentes.
Logística industrial também polui
A logística de transporte ao redor de parques industriais e para transporte de cargas em geral também é um desafio para o setor. De acordo com estudo do Fórum Econômico Mundial, com dados de 2019, o Brasil ocupa 71º lugar no ranking de qualidade de infraestrutura de transportes, dentre 141 países.
Cerca de 60% do transporte de cargas no Brasil é realizado por rodovias e a maioria dos caminhões são abastecidos por combustíveis fósseis.
O governo brasileiro tenta diminuir o impacto causado pela frota terrestre com o projeto de lei “Combustível do Futuro”, apresentado em fevereiro do ano passado. O projeto foi aprovado, após emendas, em setembro, e aguarda sanção presidencial.
O Projeto de Lei pretende aumentar a mistura obrigatória do biodiesel (derivado de óleos vegetais) no diesel para 20%, a partir de 2031. Enquanto isso, o país patina na expansão da malha ferroviária, ocupada majoritariamente pelo transporte de minérios de ferro.
Licenciamento é falho e qualidade do ar fica prejudicada
Outro grande problema está no licenciamento. A qualidade de ar em determinado lugar não é um fator considerado no licenciamento ambiental de novas indústrias para a região.
“Quando se trata de licenciamentos ambientais frequentemente ocorre que a qualidade do ar não é devidamente avaliada ao conceder uma licença ambiental para uma indústria ou empreendimento. Muitas vezes, não se leva em consideração que a área já pode estar saturada com altas concentrações de poluentes. Isso significa que, ao permitir a instalação de uma nova indústria em uma região que já possui um histórico de poluição elevada, a qualidade do ar não é monitorada como deveria”, pontua Helen Souza, pesquisadora do Instituto Energia e Meio Ambiente.
“Em São Paulo, mesmo com essa poluição, a gente tem uma regulamentação muito diferente do resto do Brasil. Então, se você pensar o que acontece em outros estados você fica ainda mais preocupado”, alerta.
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), estabeleceu em 1989 um programa nacional para o controle da qualidade do ar. Na época, previu que existisse no país uma rede de monitoramento da poluição, com equipamentos capazes de fazer a medição, além de planos para episódios críticos da poluição do ar.
“As estações de monitoramento padrão ouro, entre muitas aspas, são aqueles acampamentos técnicos que detalham a qualidade do ar. Acontece que no norte do Brasil e em alguns estados não há monitoramento oficial, só monitoramento que a gente chama de baixo custo”, avalia Souza.
O monitoramento da qualidade do ar não abrange o país todo. O Rio de Janeiro conta com mais de 90 estações, São Paulo fica em segundo lugar com quase 80 pontos de monitoramento oficiais. Na região norte não há nenhum ponto de monitoramento sob gestão de um órgão estadual, como a CETESB, que atua em São Paulo, ou o INEA, que realiza o monitoramento no Rio.
A Política Nacional da Qualidade do Ar virou lei apenas em 2024, após 35 anos de debates. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, por meio de nota, disse que a resolução permitirá avanços em ações fundamentais, como a prevenção, a visão sistêmica, o desenvolvimento sustentável, a preservação da saúde pública, do bem-estar e da qualidade ambiental. Mas esclarece que a responsabilidade do licenciamento ambiental é competência estadual. “Trata-se de instrumento adequado para o acompanhamento dos impactos causados pela poluição, considerando as condicionantes estabelecidas para manter o nível de emissões de poluentes dentro dos limites adequados e considerados seguros para o meio ambiente e a saúde humana”, finaliza a nota.
Já o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, que é o responsável por impulsionar o setor industrial brasileiro, informou à reportagem, também por meio de nota, que a única atividade da pasta para o enfrentamento da poluição industrial é elaborar a Estratégia Nacional de Descarbonização Industrial.