Brasil discute regras para a indústria de eólicas offshore, mas debate negligencia impactos ambientais e é protelado por emendas que favorecem fósseis

Estimativas apontam que a indústria de energia eólica offshore poderia gerar mais de 500 mil empregos e um rendimento de pelo menos 180 bilhões de dólares. Mas projeto em discussão no Congresso, que regulamenta a exploração em alto mar, não aborda pontos estratégicos e ainda inclui “jabuti” do gás fóssil.

Um dos países com a matriz elétrica mais descarbonizada do mundo, o Brasil segue em direção ao acordo global para triplicar a produção de energias renováveis ​até 2030, tendo acionado 13 novas centrais solares fotovoltaicas e 25 eólicas apenas em 2023. 

Na América Latina a capacidade eólica instalada em 2022 superou os 44,7 GW, e o Brasil tem um papel de liderança. Embora o continente seja hoje responsável por pouco mais de 5% da produção global de energia eólica, o país está entre os dez com maior capacidade instalada no mundo. 

Os 316 MV de energia eólica acrescentados em 2023, contudo, são apenas a ponta do iceberg do potencial eólico offshore da costa brasileira que, segundo estudo do Grupo Banco Mundial, supera os 1.200 GW. O mesmo estudo estima que, até 2050, a indústria de energia eólica offshore poderia gerar mais de 516.000 empregos e um rendimento de pelo menos R$900 bilhões para a economia brasileira.

Apesar de ser uma indústria fundamental para a transição energética, a produção de energia eólica também traz impactos e conflitos socioambientais. Problemas de contratos na ocupação de terras onde vivem comunidades tradicionais, ruído, morte de aves e outros animais e desmatamento são alguns dos exemplos. 

As projeções sobre a atividade em alto-mar também apontam para grandes impactos. A exploração offshore ainda não acontece no país, que neste momento discute o  marco regulatório que deverá estabelecer as regras de exploração. Porém, a minimização dos impactos socioambientais dessa indústria não é o centro do debate no legislativo. 

Aprovado no Senado e enviado à Câmara dos Deputados em agosto de 2022, o Projeto de Lei 576/2021, que ficou conhecido como PL das Eólicas Offshore, segue longe de alcançar um consenso para ser aprovado. 

Ao tramitar na Câmara dos Deputados, a proposta original de regulamentar a oferta e outorga de áreas para exploração de energia em alto mar recebeu as chamadas emendas “jabutis” – expressão usada no Brasil para se referir a propostas que são incluídas em um projeto de lei e que não tem nenhuma relação com o tema em si. Na maioria das vezes, aproveita-se a votação de temas importantes para que se aprovem decisões pouco populares ou polêmicas 

“Nosso Parlamento tem uma tendência de se aproveitar de projetos de lei e colocar ‘de carona’ assuntos que não são relacionados, os chamados jabutis, para que sejam aprovados em conjunto,” diz Anton Schwyter, gerente de energia do Instituto Arayara. 

Foto: Bearfotos / Freepik

As alterações aprovadas na Câmara incluem a contratação compulsória de 4,2 GW de termelétricas abastecidas a gás fóssil. Inflexíveis, essas termelétricas permaneceriam ligadas por pelo menos 70% das horas de um ano, independentemente da existência de demanda. 

Essa proposta é um desdobramento dos jabutis que foram aprovados junto à Lei nº 14.182 de 2021, que privatizou a Eletrobras, maior empresa energética da América Latina. Maior ponto de controvérsia da lei, o jabuti impôs a contratação de 8 GW produzidos por termelétricas a gás inflexíveis. 

O texto traz ainda a contratação compulsória de 4,9 GW de Pequenas Centrais Hidrelétricas, além de prorrogar para 2050 os contratos que vencem até 2028 com termelétricas a carvão, a mais poluente e ineficiente fonte de energia.

“Dentre os minerais fósseis, o carvão é o que mais traz prejuízos. Além da alta quantidade de gases de efeito estufa e seus efeitos ambientais e climáticos, o carvão nacional tem muita fuligem, que é altamente prejudicial para a saúde humana,” diz Schwyter. 

Ele explica que essa fonte de energia também é mais cara e pouco competitiva, de forma que sua geração requer subsídios, o que, em um contexto de crescimento das fontes renováveis, torna o carvão mineral uma fonte “ainda mais anacrônica.”

Além de prejudiciais em termos ambientais, os jabutis do PL causam atrasos em sua aprovação e, com isso, a perda de investimentos. “O marco legal das usinas eólicas offshore é importantíssimo para o segmento, pois dá segurança para os investidores nessa área alocarem recursos de maneira eficaz,” diz Edlayan Passos, especialista em Transição Energética do Instituto E+. 

Os jabutis ainda “diminuem a competitividade e o potencial de descarbonização da indústria brasileira, prejudicando o potencial de o Brasil se estabelecer como um fornecedor global de produtos de baixas emissões de carbono,” diz Passos. 

Soluções para o impactos da indústria eólica ficam em segundo plano

O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) já conta com 96 pedidos de licenciamento para projetos de usinas eólicas offshore, totalizando 234 GW. 

“Os pedidos de licença representam praticamente a mesma quantidade de energia que o Brasil produz hoje. Essa conta não fecha,” diz Cristina Amorim, coordenadora do Plano Nordeste Potência. “Enquanto isso, olha-se muito pouco para os impactos ambientais das eólicas offshore em si, e para o que isso significa para quem está no território.”

Desde a construção, até quando passam a operar, as usinas representam ameaças especialmente para aves e para os ecossistemas marinhos. Suas linhas de transmissão, múltiplas e mais dispersas do que aquelas de grandes usinas hidrelétricas também impactam um maior número de comunidades. 

Além disso, o texto do PL propõe licenciamentos separados para o que acontece em alto mar, de responsabilidade do Ibama, e para as faixas de areia, normalmente sob jurisdição estadual ou municipal. “É preciso entender que existe um contínuo, é tudo uma coisa só,” diz Amorim.  

Já no âmbito social, um dos principais impactos se dá junto a comunidades pesqueiras tradicionais que, na região Nordeste, utilizam barcos à vela, em lugar de motorizados. Dependentes das correntes de vento, pescadores tradicionais ficam à mercê do raio de segurança ao redor das turbinas. 

“Muitas vezes, quando o raio de duas ou mais turbinas colidem, cria-se uma barreira que os pescadores não podem ultrapassar para sua própria segurança,” explica Amorim. “Mas o que acontece se as áreas onde a pesca é melhor estão depois dessa barreira?”

Ela relata que, mesmo em estados onde ainda não existem usinas eólicas offshore, os conflitos territoriais e a violência contra as populações têm escalado. Diante disso, entidades como a Pastoral dos Pescadores já têm se posicionado contra essas obras, acrescenta. 

“O que precisamos é que a transição energética, e este PL como parte dela, seja uma transição para um outro modelo de geração energética que seja justo, inclusivo e popular,” diz.  

Um debate sequestrado

Embora o PL das Eólicas Offshore tenha sido elencado como prioritário no pacto de transformação ecológica assinado pelos Três Poderes, desde a inclusão dos jabutis pela Câmara dos Deputados o que menos se tem discutido são as eólicas em si, apesar do seu papel crucial na transição energética nacional.  

Em fevereiro, a estatal Petrobras, uma das maiores empresas do setor de óleo e gás do mundo, declarou estar aguardando definição da legislação para começar investimentos em usinas eólicas offshore, um dos pilares na transição da petroleira. Em julho, representantes da indústria de eletricidade criticaram os jabutis do PL. 

Mesmo o Ministério de Minas e Energia, que segue defendendo a exploração de petróleo, defende que as emendas referentes a combustíveis fósseis sejam vetadas

“Chegamos a uma situação rara em que, durante fóruns e audiências públicas, até agentes do setor do gás concordaram que a proposta de contratar termelétricas inflexíveis não faz sentido,” disse Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). 

Baitelo explica que, em termos numéricos, não falta energia no Brasil. “De fato, existem hoje mais contratos de venda do que consumo efetivo, ao ponto que parte dessa energia acaba sendo desperdiçada. Contudo, existem sim momentos específicos em que esse déficit ocorre”.    

É nesses momentos, em caráter emergencial, que as termelétricas representam uma solução. “Mas elas devem funcionar como um seguro de carro,” explica Schwyter. “Elas devem ficar em standby e, como com seguros, a gente espera não precisar usar”. 

Ele acrescenta que, com o avanço da geração por fontes renováveis, o sistema energético do país está mudando e, com ele, a necessidade desse “seguro”.

Mesmo porque, como explica Baitelo, a energia produzida em termelétricas é muito mais cara do que a hidrelétrica, solar ou eólica. Se aprovados os jabutis do PL das Eólicas Offshore, os custos das operações podem ultrapassar R$ 650 bilhões até 2050. 

“Isso representa um aumento de 11% na conta de luz dos brasileiros, impactando diretamente o orçamento doméstico das famílias e as cadeias produtivas do país,” disse Carlos Faria, diretor-presidente da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (ANACE). “Não podemos ter representantes cujas decisões favorecem lobbies específicos do setor de energia e vão totalmente na contramão dos interesses dos consumidores”.

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