A construção civil é uma das indústrias mais poluentes a nível mundial. Segundo relatório da ONU, o setor é responsável por cerca de 37% das emissões globais de CO2 relacionadas à energia.
Mas se por um lado a construção civil parece estar cada vez mais atrasada para cumprir a promessa de se descarbonizar até 2050, por outro, o setor apresenta hoje um dos maiores potenciais de transformação. E o Brasil está entre os países que lideram esse processo, sendo o quarto com mais obras sustentáveis segundo a Green Building Council Brasil (CBC).
Aqui, o futuro verde da construção civil está na volta às origens, no material que possibilitou as primeiras formas de construção humana: a terra. Utilizada pelo menos desde a idade do Bronze (por volta de 3000 a.C.) em combinação com outras substâncias como fibra e água, a terra permitiu que construções resistissem por muito tempo. No Brasil, construções com terra crua de mais de 250 anos podem ser encontradas em cidades como Ouro Preto, Pirenópolis e Rio de Janeiro.
“Hoje, com o crescimento do mercado da bioconstrução, a demanda por técnicas sustentáveis e materiais como a terra vem crescendo”, diz a arquiteta Marcela Bergamini que, desde 2022, vem atuando na realização de oficinas que combinam técnicas tradicionais com técnicas modernas de bioconstrução na comunidade rural de Serra da Bicha, em Minas Gerais.
A Serra da Bicha no município do Serro. Com cerca de 20 famílias, a comunidade, que ainda está no processo de reconhecimento como quilombo, é contígua a outras como Capivari e Mata dos Crioulos, que já possuem esse status. No total, a região é lar de cerca de 700 famílias, segundo a cientista social Clarissa Aguiar, que atua na região há mais de dez anos e foi uma das proponentes das oficinas de bioconstrução.
Elaboradas em parceria com a Associação Ecovila Ayrumã, as oficinas foram propostas a partir de demandas da comunidade por um espaço para alfabetização de jovens e adultos da região. Os moradores demonstraram interesse no aprendizado das técnicas de construção.
Deu-se então início à construção de um centro comunitário que, além de abrigar a Escola Sempre-Viva (atualmente a única escola de educação de jovens e adultos no município) também irá oferecer uma cozinha industrial, espaços para atendimento médico, casa de sementes, loja de artesanato e um quarto para alojar turistas que visitam o Pico do Itambé, nas cercanias da comunidade.
A primeira etapa (de fundação, estrutura e telhado) foi financiada com recursos do projeto Quilombo Vivo, contemplado por edital do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES). As oficinas formativas do Canteiro Escola foram financiadas pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais – CAU – MG.
Além da Serra da Bicha, o projeto que está entrando em sua segunda etapa, irá atender centenas de famílias de outras comunidades rurais e quilombolas da região.
Terra para construir
As vantagens do uso da terra na construção civil são muitas. Além de ser ideal para a autoconstrução (quando o próprio morador faz sua casa) e tender a ser uma alternativa mais viável economicamente, a construção com terra requer, em média, apenas cerca de 1% da energia necessária para construções com concreto armado.
As construções com terra também são mais saudáveis para seus moradores, já que elas regulam a umidade e a temperatura no ambiente interno. “A gente que mora em casa de terra nota a diferença quando entra em uma casa de cimento. [Na de cimento] O ar é muito mais quente, não tem aquele frescor da casa de pau-a-pique”, conta Júlia Rodrigues da Cunha, moradora da Serra da Bicha e uma das mestras do saber que tem participado das oficinas.
Como tantas outras pessoas da comunidade, Cunha construiu a própria casa. O conhecimento que ela tem dos processos foi passado de geração em geração por lideranças locais. “Eu sou como um passarinho desta comunidade. Aqui, nós todos somos. Como os passarinhos que não sabem ler e escrever, mas sabem voar, o que uma pessoa da comunidade sabe fazer, todo mundo sabe”, diz.
Segundo os moradores, é perceptível como a terra auxilia no conforto térmico. “É uma percepção empírica da comunidade que as casas de barro são mais frescas no verão e mais quentinhas no inverno”, conta Aguiar. “Quando as pessoas começaram a morar em casas de tijolo e cimento, o impacto foi muito grande.”
Contudo, para grande parte das famílias da Serra da Bicha, a construção com terra não foi baseada na busca por alternativas sustentáveis, mas sim a única opção disponível. “Em contextos rurais onde faltam políticas públicas e oportunidades financeiras, as pessoas que estão em casas de terra o fazem por necessidade, não por escolha”, explica Aguiar, ao que Bergamini acrescenta que “existem muitos estigmas ao redor dessas construções, já que estão atravessadas por uma história de desigualdade social.”
Apesar de seus benefícios, a terra enquanto material de construção também possui uma série de limitações. “Por não ser uniforme como o cimento, a terra demanda cuidado e testes empíricos para saber qual a melhor técnica a ser aplicada para uma construção duradoura”, explica Bergamini. Além disso, existem complicações relacionadas à umidade: por um lado, se o barro secar muito rápido, ele se contrai e podem aparecer fissuras; por outro, os tijolos de terra precisam ser protegidos da umidade, não podendo ser utilizado em qualquer localidade.
“Por isso, o nosso trabalho na Serra da Bicha vem como uma forma de valorizar o conhecimento tradicional, ao mesmo tempo que oferece novas técnicas para que os moradores possam continuar autoconstruindo, mantendo sua autonomia habitacional, mas com mais qualidade e dignidade”, diz Bergamini. Dentro do projeto, as primeiras oficinas foram oferecidas pelos mestres tradicionais de comunidades da região e, na sequência, serão apresentadas técnicas e materiais contemporâneos que podem aumentar a durabilidade das casas de terra.
Como forma de ampliar o acesso a esse conhecimento, o projeto fez uma parceria com o Instituto Federal de Minas Gerais, abrindo vaga para que quatro alunos do curso de arquitetura pudessem participar das oficinas. “O que nós aprendemos com os mestres é diferente daquilo que aprendemos dentro da faculdade”, conta a estudante Isabella Almeida. “Ao final, nós vamos pegar esse conhecimento e trazer de volta para dentro da universidade.”
Mas projetos como este têm suas limitações, que vão desde a dificuldade de acesso ao território até a obtenção de verbas para sua continuidade. “Além disso, existe um desafio de encontrar um meio termo entre o tempo urbano da prestação de contas a editais e o tempo cultural e tradicional das comunidades” diz Aguiar.
Embora o projeto ainda não tenha chegado ao fim, as organizadoras já percebem seus impactos. “Primeiramente, temos uma distribuição de renda, já que toda a equipe contratada para as oficinas e obras é local”, diz Aguiar. “Mas também já começamos a ver uma valorização da construção tradicional e um fortalecimento dos vínculos na comunidade.”
Para Evelyn Zaydenverg, da Associação Ecovila Ayrumã, o projeto tem ainda um papel fundamental para que os membros da comunidade possam se manter no território. “Existe um empoderamento e uma compreensão dos direitos que fortalecem o sentimento de pertencimento”, diz.
A isso, Aguiar acrescenta que as oportunidades econômicas e de melhoria de vida trazidas por essa formação trazem mais possibilidades para a comunidade. “As pessoas querem continuar ali, elas gostam de morar na Serra da Bicha. Mas é preciso que haja uma melhoria na qualidade de vida e no acesso a serviços públicos e direitos básicos”, diz.