Em meio a expectativas elevadas, debates intensos e avanços tímidos, a Conferência da Biodiversidade (COP16), realizada em Cali, na Colômbia, terminou deixando uma sensação agridoce na boca dos negociadores, povos indígenas e sociedade civil. Apesar de alguns avanços na reta final das negociações, como a criação de um órgão permanente subsidiário para tratar de assuntos relacionados aos povos indígenas e comunidades locais, outros temas fundamentais – principalmente aqueles que envolvem dinheiro – não evoluíram como esperado. O compartilhamento equitativo dos benefícios derivados dos dados de sequenciamento genético (DSI) foi um deles
Depois do otimismo gerado pela COP15 em 2022, no Canadá, quando 196 países-membros da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD) da ONU concordaram em criar um “mecanismo multilateral para a distribuição dos benefícios derivados do uso de informações de sequência digital (DSI) sobre recursos genéticos, incluindo um repositório global”, a continuidade dessas discussões em Cali expôs a complexidade do tema e a dificuldade de sua implementação.
A proposta de dividir os benefícios gerados pela DSI — que abrange dados genéticos digitalizados de plantas, animais e outros organismos, em sua maioria oriundos dos países mais biodiversos e usados amplamente por indústrias que lucram bilhões com cosméticos, medicamentos e alimentos — acabou se resumindo em representantes de países desenvolvidos advogando contra o recurso, delegações das nações em desenvolvimento suplicando por um pouco mais, enquanto indígenas permaneceram do lado de fora das salas de negociação. A situação trouxe à tona, mais uma vez, o desequilíbrio de poder entre o Norte e o Sul globais.
O resultado desse imbróglio foi a concordância sobre a criação de um fundo para distribuir recursos de forma mais justa, o que compensa, em parte, países em desenvolvimento e comunidades indígenas e locais.
Chamado de Fundo Cali, o mecanismo sugere que grandes corporações, especialmente aquelas dos setores farmacêutico, biotecnológico e de cosméticos, contribuam com 1% de seus lucros ou 0,1% de suas receitas. O objetivo é que pelo menos 50% dos recursos angariados seja direcionada diretamente para as necessidades autoidentificadas de povos indígenas e comunidades locais, incluindo iniciativas de capacitação e conservação da biodiversidade.
Mas o novo fundo surgiu cercado de dúvidas sobre sua efetividade na compensação de dívidas históricas. A DSI, que inclui sequências genéticas digitalizadas de organismos vivos, é essencial para a pesquisa científica e a inovação em setores como a farmacêutica, cosméticos e biotecnologia. Os três principais bancos de dados que guardam essas informações ficam na Inglaterra, no Japão e nos Estados Unidos.
Esses dados permitem o desenvolvimento de produtos altamente lucrativos, mas, por serem digitais e facilmente transferíveis, os países de onde esses recursos são extraídos e as comunidades tradicionais que identificaram inicialmente seu potencial têm pouca ou nenhuma participação nos lucros gerados. Esse é o ponto central da discussão: como garantir que o uso da DSI beneficie também aqueles que historicamente foram excluídos do processo de distribuição de riqueza gerada por seus recursos.
A pauta é antiga. No Protocolo de Nagoya, adotado em 2010, durante a 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), houve o reconhecimento da soberania das nações sobre sua biodiversidade e os direitos ao conhecimento tradicional associados. Isso assegurou a repartição de benefícios por meio de leis domésticas, como a 13.123 de 2015 no Brasil. No entanto, a implementação dessas legislações nacionais e decisões multilaterais há tempos encontra resistência do setor empresarial e dos países detentores de alta tecnologia para transformar a biodiversidade em produtos. A situação já era complicada quando se falava em material genético físico, e ganhou outra dimensão quando os dados foram digitalizados, já que os avanços tecnológicos ultrapassaram as legislações vigentes.
Fundo é avanço limitado
Apesar do avanço, há problemas. Um deles está no texto do acordo, que diz que “todos os usuários de informações de sequência digital sobre recursos genéticos sob o mecanismo multilateral devem compartilhar os benefícios decorrentes de seu uso de forma justa e equitativa”.
A ausência de uma expressão que traga o caráter de obrigatoriedade faz com que o fundo seja, pelo entendimento de muitos, voluntário. Ao não ser vinculante, reforça o receio de que a medida dependa apenas da “boa vontade” das empresas, deixando as comunidades locais mais uma vez sem força jurídica para cobrar o que lhes é direito e sem a garantia de que os recursos efetivamente chegarão aos destinatários.
Glenn Walker, do Greenpeace Austrália, acredita que o modelo proposto ainda favorece as corporações que lucram com a biodiversidade sem pagar o custo real da exploração. “Um fundo compulsório de 1% das receitas dessas empresas poderia gerar bilhões anualmente para as comunidades que realmente protegem a natureza. O sistema atual ainda permite que corporações se beneficiem sem arcar com o custo real,” critica Walker. Ele destaca que uma mudança estrutural nesse modelo poderia gerar até US$ 10 bilhões anualmente, recursos que seriam fundamentais para apoiar a conservação e a preservação conduzidas por povos indígenas.
Avanços pontuais, retrocessos históricos
Maira Smith, coordenadora do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente (MMA), entende que o processo de criação do Fundo Cali ainda carrega as marcas de um processo que não enfrenta de forma direta as assimetrias de poder: “Infelizmente não conseguimos, num ambiente de negociação institucionalizado (como no âmbito da ONU) superar injustiças históricas com a rapidez necessária para tentar reparar minimamente os danos e perdas causados aos povos indígenas e comunidades locais pela apropriação indevida de seus territórios e conhecimentos”.
Para Smith, a resistência demonstrada nos últimos dias dentro das salas de negociação por empresas multinacionais de países desenvolvidos à repartição de benefícios, “ainda caracteriza de forma bastante explícita o colonialismo exercido pelo Norte global sobre o Sul global”. Smith pontua que essa relutância das multinacionais em aderir ao fundo de forma obrigatória é um sinal de como, mesmo em plena crise ambiental, interesses econômicos e barreiras históricas ainda se sobrepõem à justiça social e ambiental.
A implementação do Fundo Cali também trouxe à tona o problema de representação. Beto Marubo, liderança indígena do Vale do Javari, região que fica localizada no oeste do estado do Amazonas, no Brasil, destaca a exclusão estrutural dos povos indígenas dos processos de decisão, mesmo em pautas diretamente relacionadas ao conhecimento e à preservação de seus territórios.
“Nós, povos indígenas, precisamos estar nesses fóruns de decisão. A maior parte das discussões em torno da DSI foram sem a nossa participação integral, o que pode implicar no avanço da biopirataria institucionalizada,” alerta Marubo. O termo biopirataria se refere a essa apropriação indevida de recursos da flora e fauna, além do conhecimento tradicional sobre esses recursos, por empresas multinacionais e instituições científicas.
Para Marubo, parte do problema vem da dificuldade histórica de reconhecimento sobre os saberes ancestrais. “Há ainda um longo caminho para que de fato o conhecimento tradicional, o compartilhamento de informações da biodiversidade esteja em nível igualitário entre os cientistas das aldeias e os cientistas não indígenas, que se acham os donos do conhecimento. Os cientistas ocidentais são muito relutantes em reconhecer a intelectualidade, o conhecimento que os povos indígenas têm por não terem um diploma de doutor de uma universidade conceituada. Mas os nossos pajés, nossos cientistas indígenas mantiveram uma cultura e um conhecimento que inegavelmente estão sendo importantes para os desafios do mundo atual”, diz.
Smith também alerta que a luta pela repartição justa de benefícios não é uma demanda isolada da Amazônia, mas de todos os guardiões das florestas do sul global. “Apesar dos avanços iniciais, acho que o desafio é enorme para os povos, comunidades e agricultores que protegem a biodiversidade em todos os biomas, e não só na Amazônia. Parte do avanço nessa agenda dependerá muito de que os movimentos de diferentes regiões consigam se articular para pressionar o sistema predominante,” afirma.
Próximos passos, uma incógnita
Ainda que tenha sido elaborado sem a participação integral das comunidades diretamente afetadas pelo DSI, o acordo sobre o Fundo Cali, se for efetivamente implementado, poderá trazer benefícios para os povos que protegem a biodiversidade. No entanto, o caminho é longo.
Henry de Novion, diretor do Departamento de Patrimônio Genético do Ministério do Meio Ambiente (MMA), enfatiza os desafios que ainda precisam ser superados nas futuras COPs. “Dada a forma como terminou a COP, com discussões pendentes sobre financiamento, orçamento e mobilização de recursos, ter uma decisão que cria um mecanismo de pagamento pelo uso das DSIs, depois de mais de 8 anos de lentas negociações, deve ser avaliada em um contexto maior e, por isso, positivamente. No entanto, a voluntariedade do fundo coloca um limite na arrecadação e impõe desafios para a destinação efetiva dos recursos,” explica. Ele menciona que a revisão do mecanismo está prevista para a COP18, em 2028.
Para o futuro, Novion acredita que será essencial fortalecer a obrigatoriedade das contribuições e garantir a presença de representantes indígenas e das comunidades locais na governança do fundo. “A criação do Fundo é um passo importante para o reconhecimento do papel dos povos indígenas na conservação da biodiversidade, pois além de prever representação desses segmentos no Comitê Gestor, a decisão da COP também prevê que no mínimo 50% dos recursos do Fundo sejam destinados aos povos e comunidades locais de países em desenvolvimento,” afirma, ressaltando que a continuidade do fundo dependerá de revisões e do fortalecimento de parâmetros que alinhem a distribuição dos recursos com as necessidades autoidentificadas por esses grupos.
Para a COP17, que será sediada na Armênia em 2026, as expectativas de avanços na participação dos povos indígenas e comunidades tradicionais nas mesas de decisões da ONU é grande. Até lá, enquanto avança em reuniões paralelas, o Fundo Cali permanece como um símbolo de uma promessa: uma tentativa de corrigir desigualdades históricas que, embora vislumbre um caminho de justiça, ainda esbarra nas barreiras do modelo colonialista que insiste em se manter.