A corrida pela transição energética está impulsionando a demanda por veículos elétricos. Entre os insumos necessários para a produção destes automóveis, há uma busca pelo lítio, mineral utilizado na fabricação de baterias, por ser mais leve e eficiente.
A bateria pode custar até 30% do preço total de um veículo elétrico. Com isso em jogo, o Brasil pretende se posicionar como estratégico nesta indústria. Mas, até agora, o país não produz baterias: por enquanto, entra apenas como um ator na cadeia de insumos para a fabricação, ou seja, com a mineração do lítio.
A estimativa da Agência Internacional de Energia (IEA, sigla em inglês) é que nas próximas décadas a demanda por lítio para veículos elétricos cresça mais de quarenta vezes, passando de 22 toneladas em 2020 para 1.063 toneladas em 2040.
O ano de 2023 bateu recorde de vendas de carros elétricos no planeta, foram 13,7 milhões de veículos elétricos, ou seja, 16% do total de vendas de carros. Em 2020, esse número representava apenas 4%, de acordo com relatório da EV-Volumes.
No primeiro semestre deste ano, mais de 79 mil veículos leves eletrificados foram emplacados no Brasil, de acordo com levantamento da ABVE (Associação Brasileira do Veículo Elétrico). No recorte do mesmo período em 2023 o salto foi de 146%.
De acordo com a ABVE, a fabricante BYD é líder do segmento no Brasil, responsável por quase 40% dos emplacamentos de 2024. O plano da montadora chinesa é ambicioso: com seus carros elétricos, a empresa quer chegar na liderança global de vendas geral, entre todos os veículos – não apenas na categoria.
“Para isso, a expansão da empresa no Brasil está em andamento, com a construção da maior fábrica da companhia fora da Ásia, em Camaçari (estado da Bahia). Até o fim de 2024, os primeiros veículos da BYD, todos eletrificados, começarão a ser montados no complexo fabril, que terá capacidade instalada de 150 mil veículos por ano na primeira fase de implantação, podendo chegar a 300 mil veículos numa segunda etapa”, diz Alexandre Baldy, conselheiro especial da BYD.
Para o diretor de componentes da ABVE, Rodrigo Vicentini, o Brasil tem potencial para produção da bateria, não apenas para exportar a matéria prima. “Primeiramente, por uma questão de segurança, para garantir a qualidade do processo. É importante não depender de outros mercados. O Brasil precisa participar dessa tecnologia para não ficar para trás e não ser apenas um consumidor. Precisamos desenvolver processos de inclusão, sustentabilidade, e colocar mais engenheiros para participar dos ciclos globais de desenvolvimento”, diz Vicentini.
A BYD pretende criar um centro de pesquisa e desenvolvimento para produção das baterias em território nacional, e investir no minério brasileiro. “O lítio é uma matéria prima importante na fabricação das baterias e mais uma vez o Brasil tem a chance de se tornar um protagonista global em termos de inovação e tecnologia”, diz. “A BYD decidiu fabricar as baterias de carros a passeio aqui, com um investimento vultoso e estratégico, pois não há nenhuma indústria de baterias fora da Ásia, sendo esta a primeira globalmente, justamente por o Brasil possuir esta riqueza natural”, complementa Baldy. A empresa não comentou quando pretende começar com a produção.
Carros menos poluentes, mas indústria dependente da mineração
A eletrificação dos carros vai de encontro com as metas de descarbonização do setor de transportes. À medida que essa indústria avança e os carros elétricos se popularizam, os automóveis movidos a combustíveis fósseis, como gasolina e diesel, vão perdendo espaço. Uma substituição da frota atual por outra menos poluente é um dos objetivos dos esforços em transição energética.
Mas nem tudo é verde na indústria de carros elétricos. Um dos grandes problemas ambientais é justamente a utilização de lítio nas baterias, o que significa, necessariamente, aumento na mineração, uma atividade que gera enormes impactos nos territórios onde acontece e que, apesar de alguns avanços, não é sustentável.
O setor mineral aponta que é responsável por apenas 0,55% das emissões de gases do efeito estufa do Brasil, de acordo com relatório divulgado pelo Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), considerando dados de 2022.
Mas nessa conta não entra a logística de transporte do minério extraído. Atualmente o Brasil tem uma malha em operação de cerca de 10 mil quilômetros, sendo 75% para logística das mineradoras.
Além disso, especialistas defendem que a emissão de gases poluentes não deve ser a única baliza dos efeitos ambientais causados pela atuação das mineradoras no país. “É importante considerar que os impactos diretos e indiretos da mineração não estão restritos às emissões de CO2. Como o histórico recente do Brasil, de uma década para cá, tivemos [rompimentos de barragens em] Mariana, Brumadinho e Maceió. Ou seja, três dos maiores desastres da história”, diz Maurício Angelo, fundador do Observatório de Mineração.
“A transição energética de fato vai demandar até 2050, por exemplo, que se duplique e quase triplique a extração de minerais, esses minerais considerados críticos e essenciais. O que são? Cada país define. No fim das contas, no Brasil é um rol gigantesco desses minerais”, diz Angelo.
Vale do Jequitinhonha
Os minerais de lítio no Brasil ocorrem em pegmatitos (rochas). O beneficiamento ocorre a partir da concentração de minerais portadores de lítio. Na maior parte dos usos industriais (como em baterias recarregáveis) é necessário maior processamento, formando sais de lítio purificados.
Mais de 90% da área de ocorrência de lítio no país está localizada na parte leste do estado de Minas Gerais, especialmente na região do Vale do Jequitinhonha. De acordo com Bruno Millanez, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e especialista em conflitos relacionados à atividade mineradora, a mineração de lítio não é novidade na região. O mineral já abasteceu o mercado doméstico, com uso para componentes industriais e até mesmo para a indústria bélica.
Com um decreto publicado em julho de 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro, ficaram permitidas as operações de comércio exterior de minerais e minérios de lítio e seus derivados. Com isso, a empresa Sigma Lithium tomou a dianteira da exploração. A atual planta da companhia, localizada em Araçuaí, tem capacidade para produzir 270.000 toneladas/ano, podendo chegar a 770 mil toneladas ao final de 2025. A empresa prevê a geração de mil empregos diretos.
Em nota, a Sigma Lithium aponta que um dos diferenciais da extração de lítio da empresa é a não utilização de barragens, adotando uma tecnologia que permite o empilhamento dos rejeitos, que posteriormente é reciclado e comercializado. Além disso, a companhia utiliza 100% da água em sistema fechado, ou seja, ela bombeia a água suja do esgoto, fazendo o tratamento para usar na extração do minério, dentro de um sistema fechado.
Na análise de Millanez, a situação de exploração de lítio no Vale do Jequitinhonha exige atenção.”Vemos uma corrida pelo lítio, uma situação semelhante ao “velho oeste”, onde todo mundo corre para a região em busca de oportunidades”, narra. “É curioso ver como o governo federal defende esses projetos, pois historicamente há um vínculo forte com o setor mineral. Governos de diferentes orientações políticas veem a mineração como uma forma de desenvolvimento”, comenta Millanez.
De acordo com o pesquisador, deve haver cuidado com os conceitos que as mineradoras utilizam para pontuar que os projetos são sustentáveis. “Do ponto de vista social, a implantação e operação de projetos minerais têm impactos significativos. Mineração ocorre em áreas isoladas, onde a população é mais vulnerável e possui menor poder político. A chegada de trabalhadores de fora provoca aumento da violência, abuso de álcool e drogas, exploração sexual e outras questões sociais. Além disso, os preços de aluguel e alimentos aumentam, sem o correspondente aumento da renda local”, pontua Millanez.
Atuação do governo
O avanço na corrida pelo lítio também é pauta em Brasília. A Frente Parlamentar da Mineração Sustentável vê com bons olhos a exploração mineral voltada para a Indústria de carros elétricos.”Nós temos aproximadamente oito por cento das reservas mundiais conhecidas de lítio, assim como de outros minerais importantes para a fabricação de veículos e baterias”, diz o deputado federal Zé Silva (Solidariedade-MG), presidente da Frente Parlamentar da Mineração Sustentável.
Procurado, o Ministério de Minas e Energia (MME) se manifestou por meio de nota, confirmando o interesse do governo na ampliação da exportação de lítio. “O Brasil tem reservas de classe mundial para todos esses minerais e tem abundância de energia limpa para extraí-los e processá-los. Ciente disso, o MME trabalha com objetivo de expandir o conhecimento geológico e pesquisa mineral para identificar e extrair eficientemente minerais estratégicos e desenvolver a indústria brasileira de transformação dos minerais estratégicos na cadeia das baterias e de outros produtos essenciais à viabilização da transição para uma economia de baixo carbono”, diz.
De 2021 para 2023, houve um crescimento de quase 18 vezes nos pedidos ao governo federal para exploração mineral em Minas Gerais, onde estão mais de 80% do estoque brasileiro de lítio- as solicitações pularam de 45 para 851.
A pasta também menciona investimentos para o desenvolvimento do setor. “O MME participou ativamente do lançamento do FIP [Fundo de Investimento em Participações], voltado para Minerais Estratégicos, que irá mobilizar mais de R$ 1 bi, além de viabilizar novos empreendimentos de minerais considerados estratégicos para a transição energética, descarbonização e produção sustentável de alimentos”, finaliza a nota.
Na análise da consultoria Aggreko, com o crescimento da produção brasileira de lítio, o mineral pode alcançar o 3º lugar em termos de faturamento, ficando atrás apenas do ferro e ouro.
Prejuízos precisam ser devidamente avaliados
Embora o estado de Minas Gerais seja o principal ator na exploração de lítio, também há áreas potenciais no nordeste do Brasil, como por exemplo, os estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, conforme aponta o Serviço Geológico Brasileiro (SGB).
Mas o minério não é um recurso renovável, tem exploração finita. Além disso, diversos fatores podem interromper projetos de mineração, como até mesmo a baixa demanda do minério em questão, por substituição da tecnologia, deixando para trás a mudança na geografia local.
De acordo com o último relatório publicado pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, o Brasil registrou 932 conflitos oriundos da mineração, superando os 840 verificados no ano anterior. Mais de 688.573 pessoas foram negativamente impactadas, em 792 localidades brasileiras.
Informações apuradas pelo Comitê, em bancos de dados federais, também revelam que o Estado brasileiro concedeu, em 2021, R$ 26,29 bilhões em renúncias fiscais para mineradoras – todas com registro de conflitos nos territórios em que atuam.
“A transição energética deve ser pensada com cuidado, levando em conta os impactos ambientais e sociais envolvidos. O Brasil, por exemplo, deve focar na redução de desmatamento e emissões agrícolas, em vez de investir cegamente na mineração de lítio”, opina Millanez.