Uma indústria que nasceu em 2020, no auge da pandemia de Covid-19, com a missão de revolucionar a forma como limpamos as nossas casas. A Onda Eco, localizada na cidade de Curitiba, no Paraná, fabrica produtos de limpeza totalmente sustentáveis seguindo preceitos como embalagens de plástico reciclado, logística reversa e fórmulas sem produtos agressivos às pessoas, animais de estimação e, claro, ao meio ambiente.
A fundadora, a economista Stefania Bonetti, conta que teve a ideia quando morava na Europa, onde este tipo de iniciativa é mais comum, e decidiu tornar um propósito a busca por um meio ambiente mais limpo – algo que ela já trazia de sua infância, vivida com os pais velejadores e profissionais do ramo químico-industrial. A empresa, que vem crescendo e se consolidando neste nicho, conta com um selo importante que reconhece seu DNA sustentável: a Onda Eco é uma empresa B (ou B Corp, no jargão em inglês).
Tal qual as gerações Z e alfa são conhecidas como nativas digitais – nasceram em um mundo já permeado pelas tecnologias e não precisaram se adaptar a elas – há uma gama de empresas que já “nasceram” alinhadas ao conceito de sustentabilidade. Esse cenário acabou gerando um movimento global, e hoje parte delas conta com o respaldo do Sistema B, que ajuda empresas a mensurar impactos e aprimorar processos com comprometimento socioambiental.
«Ser uma empresa B certificada dá credibilidade no mercado, ajuda a combater o greenwashing e auxilia na parametrização de metas e métricas. Nós já aumentamos a nossa pontuação desde a fundação [as avaliações são periódicas a cada três anos] e seguimos traçando metas de melhoria, como a redução da pegada de carbono de toda a cadeia», destaca Bonetti.
As indústrias e empresas sustentáveis “nativas” estão na raiz do movimento, mas hoje indústrias que fizeram uma transição e se tornaram mais verdes também podem buscar a certificação B.
Paulo Cruz Filho, um administrador que sempre soube que queria fazer algo com propósito, encontrou no Sistema B este caminho. Hoje cofundador da We.Flow, uma empresa B de consultoria e treinamento em ESG (conjunto de padrões e boas práticas ambientais, sociais e de governança), diversidade e inclusão, ele explica que a letra B, aqui, se refere à benefício, algo que pode ser sentido pelas próprias empresas e pela sociedade de um modo geral.
O movimento B surgiu em 2006 nos Estados Unidos (como B Lab) com o objetivo de «redefinir o sucesso na economia para que sejam considerados não apenas o êxito financeiro, como também o bem-estar da sociedade e do planeta». Nos anos seguintes se espalhou pelo mundo, especialmente na década de 2010, e na América Latina principalmente a partir de 2012. Hoje, este movimento se define como uma «comunidade global de líderes que usam os seus negócios para a construção de um sistema econômico mais inclusivo, equitativo e regenerativo para as pessoas e para o planeta».
O movimento contempla pouco mais de 300 empresas certificadas no Brasil, mas, segundo Cruz, é grande o potencial de expansão. Por volta de 2015, ele conta, muitos empreendedores queriam fazer algo diferente, mas ainda não sabiam como. Aos poucos foram surgindo movimentos locais e globais que valorizam o impacto positivo e proativo das empresas.
«Quando eu voltei para o Brasil eu criei uma pós em negócios de impacto, e, numa aula inaugural, em 2015, eu disse: ‘em dez anos isso vai ser ‘obrigatório’, não vai fazer sentido uma empresa ser criada sem pensar no impacto que ela vai gerar’. Acabou acontecendo em cinco anos», ele lembra, referindo-se ao cenário de 2020, quando este movimento ganhou força no Brasil a partir do fortalecimento do ESG.
Este é um conceito que vem do mercado financeiro, já que os fundos de investimento passaram a observar não apenas fatores econômicos ao escolher a cesta de alocação de recursos, mas também ambientais, sociais e de governança.
A diferença entre ESG e Sistema B é importante, já que a primeira sigla virou quase sinônimo de sustentabilidade, algo impreciso, na percepção do especialista. «O ESG vem do mercado financeiro, mas ganha uma expressão tão grande no mundo que vira quase um sinônimo de sustentabilidade. No entanto, há quem não concorde, dizendo que, enquanto ESG é puramente sobre riscos financeiros, sustentabilidade é algo muito maior. Não existe uma definição consensual. É possível dizer que está nesta guarda-chuva maior da sustentabilidade», avalia.
Apesar da “onda verde”, empresas sustentáveis ainda precisam nadar contra a corrente
Além de estar alinhado aos princípios de tais corporações, este é um mercado com grande potencial de ganhos financeiros: uma pesquisa sobre tendências de bens de consumo em 2024 mostrou que quase 40% dos consumidores aceitam pagar mais caro por produtos ecológicos ou sustentáveis. Este setor deve crescer a uma taxa de 12% ao ano até 2025, estima-se, representando um potencial de mercado de mais de 500 bilhões de reais.
No entanto, embarcar nesta onda sustentável ainda apresenta alguns entraves. De acordo com a publicação Sistema B e as Empresas B na América Latina: um movimento social que muda o sentido do sucesso empresarial, um dos maiores desafios ainda é aumentar o impacto positivo enquanto se mantém a viabilidade financeira do negócio, uma vez que esta díade «requer novas maneiras de pensar e agir».
De acordo com o site do próprio Sistema B, os critérios avaliados são Governança, Trabalhadores, Comunidade, Meio Ambiente e Clientes, com subitens que englobam toda uma cadeia de impactos positivos, como saúde, educação, diversidade, equidade e inclusão, no caso de pessoas, e água, energias renováveis, conservação da biodiversidade e de recursos, no caso da natureza.
Os autores destacam que é crescente o número de pequenas empresas B compradas por grandes corporações, mas que estas aquisições ainda geram desconfiança no mercado. «Toda vez que uma grande empresa adquire uma pequena, principalmente quando se trata de uma empresa comprometida com um propósito, seja ou não uma Empresa B Certificada, os clientes e o público em geral se perguntam se conseguirão manter a confiança nos atributos dos produtos e da empresa ou se a integridade e a ética que os atraíram para as pequenas empresas desaparecerão», afirmam. Neste sentido, os autores destacam a importância do estabelecimento de políticas públicas voltadas a uma economia circular.
A fundadora da Onda Eco concorda que o caminho não foi fácil e que até hoje a marca enfrenta muitas barreiras, como o preço do plástico reciclado, mais caro que o de resina virgem, e a falta de incentivos fiscais para indústrias verdes. «Nós temos hoje nas embalagens um dos maiores pesos de custo, mas seguimos investindo neste material porque está no nosso DNA», conta. Paralelamente a isso, a empresa investe em tecnologias para reduzir ao máximo o custo de sua produção e, consequentemente, tornar-se mais competitiva.
Além disso, o custo da certificação representa um desafio importante: enquanto o uso da ferramenta de avaliação de impacto é gratuito, a certificação – cuja taxa é calculada em cima do faturamento – custa a partir de mil dólares por ano, segundo Cruz. Além disso, os critérios para a certificação são rigorosos, ele explica.
Sistema B não escapa do greenwashing
Nem tudo é o que parece no mundo das B Corps, no entanto. Alguns estudos apontam que o Sistema B e algumas de suas empresas certificadas podem, sim, praticar greenwashing, quando impactos negativos ambientais são “escondidos” e algumas ações alinhadas aos preceitos ambientalmente corretos são divulgadas com destaque.
A dissertação Análise discursiva de comunicação de empresas certificadas sustentáveis pelo Sistema B-Corporation, apresentada por Laís Pardo Castilho ao programa de mestrado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, expõe essa realidade. Ao analisar os discursos de determinadas companhias – a empresa de aluguel de carros Movida e a gigante dos cosméticos Natura –, Castilho percebe que elas geram impactos negativos consideráveis no meio ambiente.
Enquanto a Movida possui uma frota de carros alimentada por combustíveis fósseis e recebeu diversas ações trabalhistas, a Natura, entre outras questões, construiu uma fábrica em área de preservação permanente (APP), retirando recursos do local, recebeu uma série de autos de infração do Ibama e gerou um saldo positivo de embalagens plásticas descartáveis, em que pesem ações de reciclagem.
Procurada, a Movida não se manifestou. Já a Natura, em nota, afirmou que “tem um compromisso histórico com a sustentabilidade e com a transparência na comunicação de suas ações», atuando “há mais de 24 anos na Amazônia com uma rede sustentável de economia de floresta em pé, que prioriza a conservação do meio ambiente e a prosperidade econômica e social das populações locais.”
Sobre os pontos mencionados pela tese, a Natura se posicionou afirmando que o Ecoparque, localizado no Pará, estaria localizado em uma área de expansão urbana e que suas instalações não ocupam Área de Preservação Permanente (APP). “A partir de sua implantação, houve recuperação de áreas antes degradadas por pasto, bem como a conservação da biodiversidade local. A Natura não faz nenhuma intervenção na APP e não realiza captação da água da nascente existente no site. A água que abastece todas as operações da empresa, tanto industriais como de consumo humano, são provenientes de captação subterrânea, outorgada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (SEMAS)», destaca a nota. “A Natura também mantém um programa de monitoramento da biota aquática e terrestre para acompanhar a diversidade de espécies e identificar as populações que frequentam ou transitam pelas áreas do site.”
A empresa salienta ainda que qualquer ação de acesso ao patrimônio genético é respaldada por documentos e informações cedidos ao IBAMA e que foram aprovados pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), conforme determinação da Medida Provisória n. 2.186/2001 e sob as diretrizes da Lei de Acesso à Biodiversidade (Lei n. 13.123/2015).
Por fim, sobre a geração de plásticos, a Natura destaca ser signatária do Global Commitment da Ellen MacArthur Foundation, que reúne empresas comprometidas com a circularidade e redução da poluição plástica. “Desde 1983, quando fomos a primeira empresa brasileira de cosméticos a lançar refis para seus produtos, evitamos mais de 2 mil toneladas de resíduos, com mais de 10% desse total referente a plásticos. Anualmente, incorporamos 2.445 toneladas de plástico reciclado, quase 22% do total gerado, e utilizamos plástico renovável de fonte vegetal, reduzindo 6 mil toneladas de gases de efeito estufa por ano.» Além disso, a linha Kaiak Oceano, citada na tese, teria evitado a emissão de 366 toneladas de carbono e elevado o percentual de plástico reciclado em mais de 10%. “Atualmente, 81% de nossas embalagens são reutilizáveis, recicláveis ou compostáveis, com a meta de alcançar 100% até 2030.”
O mercado vai exigir mais sustentabilidade?
Embora os casos de greenwashing na indústria sigam altos, há um grande potencial de que empresas se interessem de forma crescente pela verdadeira transição sustentável, na opinião de Cruz. E é do mercado financeiro que pode vir a próxima grande alavanca para esta transição. Isso porque a Resolução n. 193/2023 da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) estabelece que companhias de capital aberto sejam obrigadas a elaborar e divulgar relatórios de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade, com base nas normas do ISSB (International Sustainability Standards Board ou Conselho Internacional de Normas de Sustentabilidade), a partir de 2026.
De acordo com Cruz, esta legislação será um divisor de águas no modelo de negócios brasileiro. «As empresas vão precisar medir e divulgar seus impactos. Se uma empresa sofrer uma catástrofe ambiental, por exemplo, e esse risco não tiver sido divulgado, seus investidores poderão processá-la. Empresas menores que fornecem para as grandes também precisarão se adaptar, gerando um efeito cascata», explica.
A pergunta que se coloca é de que forma se trabalhará para garantir que isso reflita em indústrias realmente mais comprometidas, e não em indústrias mais treinadas em sustentar apenas uma fachada socioambiental.