O descarte de plásticos é um problema global, e o setor de alimentos é um dos seus principais impulsionadores. Basta uma visita rápida a um supermercado para perceber isso: com exceção de algumas embalagens em papel ou alumínio, nossa comida está quase sempre embalada em plásticos que depois vão para o lixo.
Esta é uma história relativamente recente: até os anos 1970, a quantidade de plástico produzida no mundo era relativamente pequena, mas passou a crescer, desde então, mais rápido que qualquer outro material. No início dos anos 2000, a quantidade de resíduos plásticos que geramos aumentou mais em uma única década do que nos 40 anos anteriores, afirma o Banco Mundial.
Segundo o relatório “Um oceano livre de plástico: desafios para reduzir a poluição marinha no Brasil“, publicado pela Ong Oceana, o Brasil produz cerca de 7 milhões de toneladas de produtos plásticos a cada ano, sendo 44% deste montante plásticos descartáveis e de uso único, ou seja, embalagens, canudos, talheres, dentre outros, que são usados, via de regra, apenas uma vez.
O Projeto de Lei n° 2524/2022, em tramitação no Congresso, traz propostas para mudar este cenário. De autoria do Senador Jean-Paul Prates (do partido PT, do Rio Grande do Norte), o texto prevê a proibição de fabricação, importação, distribuição, uso e comercialização de itens de uso único descartáveis, além de estabelecer 2030 como prazo para que todas as embalagens sejam “retornáveis e comprovadamente recicláveis ou substituídas por embalagens confeccionadas por materiais integralmente compostáveis, feitos a partir de matérias-primas renováveis”.
Mas, enquanto o projeto espera por votação, o cenário atual é de aumento da produção e consumo, especialmente no setor de alimentos, das embalagens plásticas com resina virgem. De acordo com a Abief (Associação Brasileira da Indústria de Embalagens Plásticas Flexíveis), somente em 2023 o país produziu 2,224 milhões de toneladas de embalagens plásticas flexíveis. O setor de alimentos é o principal demandante do material, abocanhando uma fatia de quase 41% da produção (901 mil toneladas).
Na ponta desta economia linear, cada brasileiro descarta, em média, 1 KG de lixo plástico a cada 7 dias, sendo que a coleta seletiva porta a porta atende cerca de 70 milhões de habitantes ou apenas 32,4% da população brasileira, de acordo com Panorama de Resíduos Sólidos no Brasil. No entanto, devido à desigualdade entre as regiões brasileiras, quando observada a média da população urbana atendida, por município, a coleta seletiva porta a porta alcança apenas 14,7% dos habitantes.
A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) afirma que “todas as embalagens plásticas usadas na cadeia de alimentos são passíveis de reciclagem”, mas a verdade é que nem tudo o que chega às cooperativas e empresas de reciclagem pode ser aproveitado. Alguns materiais têm maior taxa de reciclabilidade e menor índice de downcycling (perda de qualidade com a reciclagem, inviabilizando seu retorno à cadeia de embalagens de alimentos), como o PET (polietileno tereftalato, o plástico tipo 1), enquanto outros, especialmente as embalagens flexíveis e multicamadas (que incorporam diferentes tipos de polímeros na composição) apresentam maior complexibilidade para reciclagem e não raramente terminam sendo encaminhados ao aterro.
Assim, o destino de boa parte destes resíduos ainda são lixões e aterros sanitários — estima-se que há mais de 3 mil lixões no país, segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2023 da Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (ABREMA).
O paradoxo do plástico e os entraves técnicos e legais
O problema é uma espécie de encruzilhada. A Abia defende o uso do material em virtude de sua capacidade de manter a qualidade e a segurança dos alimentos, evitando “a proliferação de organismos nocivos à saúde” e “reduzindo a perda e o desperdício”, e especialistas confirmam que, para alguns alimentos, ainda não há tecnologia que substitua as embalagens de plástico sem comprometer as características principais do produto.
Marcos legais como a Política Nacional de Resíduos Sólidos, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), e o Acordo Setorial de Embalagens, que estabeleceu metas progressivas de reciclagem, reutilização ou destinação ambiental correta, foram importantes para trazer avanços, ainda que mais tímidos do que o necessário. No entanto, a gerente sênior de advocacy da Oceana, Lara Iwanicki, destaca que ainda há muito a se avançar. “No Brasil, a gente tem a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que traz uma obrigação de que as empresas que produzem, importam e comercializam embalagens precisam fazer a logística reversa. Mas a gente não tem um decreto funcionando e poucas empresas estão cumprindo com essa obrigação legal, então o que acontece é que a gente tem um volume gigantesco de resíduo plástico que está chegando ao meio ambiente, lixões, etc.”, afirma.
O Ministério do Meio Ambiente admite o problema. “O Brasil é um dos maiores geradores de poluição plástica do mundo, mas com potencial para ampliar a reciclagem. O Acordo Setorial de Embalagens trouxe inovações, mas era uma meta voluntária de 22% de recuperação até 2023 e a maior parte das empresas não estão neste acordo”, afirma Adalberto Maluf, secretário nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Ele acrescenta que apenas um ínfimo percentual de empresas associadas à Abia executam a logística reversa.
Ações (ou falta delas) na indústria
A iniciativa eureciclo concede selos a empresas que se comprometem com a compensação ambiental de resíduos por meio da emissão de Certificados de Reciclagem das Embalagens. Um exemplo de empresa a assumir compromisso foi a margarina Qualy, que reinseriu, de outubro de 2021 ao final de 2023, 20.000 toneladas de plástico polipropileno (tipo 5) na cadeia, equivalente a cerca de 790 milhões de potes de margarina.
A Nestlé, uma das maiores indústrias alimentícias do mundo, publiciza que pretende tornar 100% das embalagens “prontas para serem recicladas, ou reutilizadas”, além de “reduzir o uso de plástico virgem de nossas embalagens em um terço até 2025” e “reciclar 100% do plástico que usamos a partir de 2025”. No entanto, procurada pela reportagem, a empresa não retornou o contato e não confirmou se as metas serão cumpridas, tampouco comentou estratégias para alcançá-la.
A Pepsico, dona de diversas marcas de refrigerantes e salgadinhos, entre outros produtos, também não comentou suas metas de “introduzir embalagens mais sustentáveis na cadeia de valor” e “reduzir o uso de plástico virgem em 50% em seu portfólio global de alimentos e bebidas até 2030, usando 50% de conteúdo reciclado em suas embalagens de plástico, entre outras iniciativas”.
Em nota, a Abia destaca, entre os esforços já em curso do setor, “a redução da quantidade de plástico em garrafas de água e óleo de cozinha, o uso de materiais biodegradáveis, a adoção do plástico verde, feito de etanol, a aposta em embalagens retornáveis e a eliminação de pacotes com mais de uma embalagem”. Além disso, a instituição é parte da Coalizão Embalagens Juntos pela Logística Reversa, uma iniciativa para aumentar a taxa de reciclagem.
Iwanicki concorda que há algumas mudanças sendo observadas no setor, embora sejam pontuais e não representem, ainda, larga escala. “O que a gente está vendo é que várias empresas estão surgindo com soluções de embalagens compostáveis, uma ou outra solução de embalagem retornável, além dos materiais clássicos, como vidro, alumínio, papel e celulose ou madeira, que acabam também substituindo [o plástico] em algumas aplicações. A Ambev, por exemplo, lançou água em lata, [uma vez que] a lata de alumínio tem um índice muito maior de reciclabilidade e de reciclagem no Brasil do que o PET. Então já há essa transição”, exemplifica.
Ela destaca, contudo, que há entraves para uma transição mais robusta, com regras sanitárias que muitas vezes impedem a substituição de alguns materiais. “Não é todo material que pode estar em contato com o alimento, o que é curioso porque o plástico tem aditivos químicos e produtos químicos cancerígenos e é permitido usá-lo também em contato com o alimento. São regras defasadas que precisam ser discutidas tecnicamente e atualizadas para substituir embalagens plásticas”. De fato, segundo a Abia, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe “o uso de plástico reciclado em contato com alimentos, exceto o polietileno tereftalato (PET), e desde que atendidos os requisitos definidos nas regulamentações aplicáveis”.
Economia circular: a verdadeira transição ecológica
A economia circular é um pilar defendido pelo governo brasileiro, que trabalha em medidas para avançar na regulamentação e fiscalização do setor. De acordo com o secretário nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental, são esperados para os próximos meses uma série de decretos e portarias que vão dar forma de lei aos compromissos assumidos nos últimos anos de forma voluntária por algumas empresas — chegando a metas de 30% de reciclagem obrigatória ainda este ano e 50% até 2040 — e regulamentar a verificação de resultados, somando-se a outros artifícios legais já existentes.
Um dos mais notáveis avanços foi a publicação, no último dia 27 de junho, do decreto que institui a Estratégia Nacional de Economia Circular (ENEC).
A decisão propõe a saída de um modelo linear para outro no qual haja a redução do uso de embalagens e da extração de recursos. Este novo modelo pressupõe elaborar produtos com design para reciclagem a partir do uso dos materiais adequados, segundo Guarnieri. “Algum resíduo a gente sempre vai gerar, mas a diferença é que com a economia circular a gente gera mais resíduo do que rejeito”, explica. “Aí a logística reversa entra na economia circular, fazendo com que esse resíduo retorne, por meio da reciclagem, reuso ou, no caso dos alimentos, por meio da compostagem, e você consegue fazer com que esse ciclo seja infinito.”
Outra decisão sobre a qual há grande expectativa é o Tratado Global Contra a Poluição Plástica, que pode trazer um impacto importante na redução de plásticos descartáveis e de uso único. O acordo foi firmado em 2022 por chefes de Estado, ministros do Meio Ambiente e representantes de 175 nações durante a quinta Assembleia do Meio Ambiente, em Nairóbi, no Quênia. O texto final do Tratado deve ser definido durante a quinta sessão do Comitê Intergovernamental de Negociação que acontece entre 25 de novembro e 1 de dezembro de 2024 em Busan, na Coreia do Sul. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o documento deve incluir dispositivos técnicos para “promover a produção e o consumo sustentáveis de plásticos”.
Na opinião de Iwanicki, porém, ainda é cedo para prever os resultados. “Também existe uma provisão de materiais alternativos ao plástico dentro do tratado, mas é um tratado ainda em fase de construção, então é um pouco cedo para dizer o quanto isso vai influenciar.” Ainda assim, a gerente de advocacy pontua que a mera existência desta discussão é um sinalizador para o mercado e investidores importante neste momento de transição de paradigma, mostrando que há um nicho econômico a ser explorado — algo que o governo pode estar deixando passar ao não entender que existem empregos e renda na indústria verde e na bioeconomia.
É neste contexto que o Projeto de Lei n° 2524/2022 — impulsionado pela campanha Pare o Tsunami de Plástico, da Oceana — tramita. Iwanicki prevê, contudo, que a matéria deve avançar apenas após o período de eleições municipais.
Mudanças de paradigma
Dos decretos e leis à realidade concreta, há um caminho que requer investimentos em equipamentos, processos, conhecimento, treinamento, capacitação, controle e gestão ambiental. “São mudanças que levam tempo e demandam recursos, mas que podem trazer resultados em longo prazo”, destaca Guarnieri. A função do governo neste contexto precisa ir além da caneta: é preciso fiscalizar e fazer valer o que está na lei, além de trabalhar com incentivos fiscais, por exemplo, como o ICMS ecológico, um imposto mais barato para quem usa matéria-prima reciclada.
Iwanicki acrescenta que o plástico, um derivado do petróleo, conta com subsídios e carga tributária diferenciada em toda a cadeia produtiva, algo que precisa mudar para que outros materiais ganhem competitividade. A própria Abia admite que “em muitos casos, produzir plástico virgem é mais barato do que reciclar”.