Triplicar a produção de energias renováveis e duplicar a eficiência energética mundial até 2030 são passos cruciais para limitar o aquecimento global a 1.5°C. Não à toa, a discussão do tópico estavaentre as mais aguardadas para a COP 28, que começou no dia 30 de novembro, em Dubai, nos Emirados Árabes.
Já no segundo dia do World Climate Action Summit, 2 de Dezembro, cerca de 116 países assinaram o Compromisso Global sobre Energias Renováveis e Eficiência Energética, concordando em triplicar a capacidade mundial instalada de geração de energia renovável para pelo menos 11.000 gigawatts e em duplicar a taxa média anual global de melhorias na eficiência energética para mais de 4% até 2030.
Segundo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, sigla em inglês), a América Latina possui uma das matrizes energéticas menos poluentes do planeta e tem potencial para ser o grande impulsionador das mudanças a nível global.
O Brasil se destaca, estando entre os 12 países do mundo que, segundo projeções da IEA, aumentaram sua capacidade de energia renovável em um nível superior ao necessário para cumprir as metas para 2030.
“Só em termos de energia eólica offshore, o Brasil tem potencial para abastecer a Europa inteira. Não precisaríamos de nada fóssil na nossa matriz”, diz Nicole Oliveira, diretora executiva do Instituto Internacional Arayara.
Mas a substituição de matrizes é apenas um dos elementos necessários para uma transição energética justa, que atue em conformidade com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
“A transição que pedimos vai além de substituir giga por giga de uma matriz por outra. Queremos uma transição que traga uma economia mais justa para o país e que não reproduza o modelo que temos atualmente”, diz Oliveira.
Histórico de conflitos
Segundo Verena Glass, coordenadora de comunicação do movimento Xingu Vivo Para Sempre, o modelo atual é fortemente marcado por um colonialismo interno. “O paulista olha para esses projetos no Norte e pensa: ‘lá só tem índio, e alguém vai ter que pagar essa conta.’ Mas quem é penalizado é sempre aquele que está no território”, diz Glass.
A usina hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira, no estado do Pará, é um exemplo emblemático dessa realidade. Inaugurada em novembro de 2019, a obra teve um custo de R$40 bilhões e produz em média 39% da sua capacidade instalada por ano. Em 2021, a usina chegou a operar com apenas uma de suas 18 turbinas, produzindo pouco mais de 2% da sua capacidade.
“Nossa leitura técnica, desde o princípio, era de que Belo Monte não geraria eficiência energética. Desde quando começou a operar, a usina ficava inoperante por quatro meses ao ano, em consequência da sazonalidade do Xingu”, explica Glass.
Os maiores problemas associados a Belo Monte, contudo, são de ordem socioambiental. “Durante o processo de construção, você tem um deslocamento forçado de milhares de pessoas, e um caos e miséria sem precedentes se instalam na região, com Altamira chegando a ser a cidade mais violenta do Brasil em 2017, de acordo com o Mapa da Violência do IPEA”, diz Glass.
“As contrapartidas exigidas nunca foram cumpridas, mas mesmo assim o projeto recebeu licença de instalação e operação. Belo Monte se tornou um vetor de violência e ecocídio. As comunidades da Volta Grande do Xingu estão passando por um nível de fome nunca antes visto, além de depressão e perda de identidade”, acrescenta.
Se isso não fosse suficiente, os moradores da região têm uma das energias mais caras do Brasil. “Hoje, um indígena, que não tem mais renda em decorrência da chegada da hidrelétrica, chega a pagar de 600 a 700 reais de eletricidade por mês”, diz Glass.
Uma tragédia que se repete
A história de Belo Monte não é um caso isolado. Situações semelhantes se repetem em diferentes comunidades ao redor do país.
No Nordeste brasileiro, a produção de energia eólica onshore e offshore tem crescido exponencialmente. Em julho deste ano, a região bateu recordes, produzindo o suficiente para suprir sua necessidade e ainda exportar para o restante do país. Ao mesmo tempo, as usinas eólicas estão entre os empreendimentos que mais têm causado apreensão à sociedade civil.
“No Ceará, usinas eólicas já afetam a vida do povo Tremembé. As torres eólicas estão mudando o fluxo da pesca e ameaçando a soberania alimentar e nutricional da população”, diz Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). “Essas comunidades também dependem dos ciclos da pesca para a prática de determinados rituais. Então, a dificuldade no acesso a certos peixes não traz apenas danos ambientais, como também psicológicos e socioculturais. Ela interfere diretamente no contexto coletivo”, acrescenta.
Além disso, um estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) em parceria com o Plano Nordeste Potência identificou graves abusos por parte de empresas de energia eólica em contratos assinados com pequenos proprietários de terras.
“A implementação de usinas eólicas é realmente uma discussão muito atual, especialmente no sentido de construir um arcabouço regulatório, seja ele legal ou voluntário, porque ainda não existem documentos que agreguem as boas práticas para a indústria de uma maneira estruturada”, diz Marina Esteves, coordenadora de projetos em Meio Ambiente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
Em comunidades vulneráveis, a ausência desse arcabouço resulta em realidades ainda mais violentas. É o caso da comunidade quilombola do Baú, em Minas Gerais, onde conflitos com uma empresa eólica levaram residentes como Carlos Rocha (nome fictício) a serem incluídos no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.
“Como nosso quilombo até hoje não foi titulado pelo INCRA, um fazendeiro que ocupava parte do território reconhecido como parte da comunidade pelo laudo antropológico da Fundação Palmares vendeu quase 200 hectares da nossa terra para uma empresa de energia eólica”, conta Rocha. “Fizemos muitas denúncias, mas sempre por telefone, por medo de represália”, acrescenta.
Ele narra que, mesmo antes de a usina entrar em funcionamento, a comunidade já está sofrendo. “Eles desmataram tudo. Uma área que passamos a vida inteira preservando, desmatada de uma única vez. E ainda nem sabemos qual vai ser o impacto quando a usina estiver em funcionamento”, diz Rocha.
Destaque nos índices nacionais de solarimetria, Minas Gerais também sente o impacto da crescente presença da produção de energia fotovoltaica. Além de ter o maior número de equipamentos de geração distribuída, Minas abriga um dos maiores parques de energia solar da América Latina, resultado do projeto Sol do Cerrado, da mineradora Vale, que teve início em 2022 no município de Jaíba, no Norte do estado.
“De renovável, essa energia só tem o nome”, diz Edna Correia de Oliveira, presidente da Federação Quilombola do Estado de Minas Gerais. “Não vejo nada de renovável em um instrumento que, para gerar energia, precisa suprimir as matas. Essas usinas estão acabando com a fauna e a flora que, para nós quilombolas, é de extrema importância. Precisamos da mata, dos animais, de tudo que tem a ver com a nossa existência e subsistência”, acrescenta.
Oliveira explica que as comunidades quilombolas não são contra as energias renováveis. “O que nós somos contra são empreendimentos que desrespeitam nossas tradições, nosso território e nossos modos de vida”.
Tuxá, que também defende que os povos indígenas não são contra a transição energética, mas sim contra processos impositivos, acrescenta que “não basta querer renovar a matriz de geração de energia, sem dialogar com os agentes que serão impactados.”
Desafios e potencialidades
Para Esteves, do Instituto Ethos, o interesse global que a COP 28 traz acerca da ampliação das energias renováveis gera uma oportunidade de mercado que funciona como qualquer outro boom setorial. “Se existe uma diretriz internacional que estimula os empreendimentos renováveis, isso significa que também vai haver apoio governamental e um direcionamento de recursos maior por parte das próprias empresas”, diz.
Com o início da conferência internacional do clima, ela destaca a necessidade de se pautar uma transição energética justa, que tenha responsabilidade social na implementação de novos empreendimentos – algo que a Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA) estabelece nas suas recomendações-chave.
“Não é por se tratar de uma energia renovável que não existe a necessidade de acompanhamento, e que não existem outros problemas em sua implementação”, acrescenta Esteves.
No Rio Grande do Norte, por exemplo, esse processo traz preocupações tanto sociais, quanto econômicas. “As grandes indústrias fotovoltaicas estão sendo construídas sobre os nossos melhores solos, em regiões com grande disponibilidade hídrica”, diz Jozivan Nascimento, Coordenador de Meio Ambiente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente (IDEMA) do estado. “Nós temos que parar de usar o termo ‘energias renováveis’ como sinônimo de melhoria ambiental. O termo mais apropriado seria ‘energias de baixo carbono’”, conclui.
Esteves defende que, atualmente, muitas empresas têm demonstrado preocupação com os impactos sociais e ambientais da implementação de seus projetos. Contudo, elas ainda deixam muito a desejar, seja em relação à restauração de áreas afetadas, seja em relação à compensação às populações.
“O posicionamento das empresas ainda é muito arbitrário. Normalmente, elas já chegam determinando qual será a compensação, ao invés de escutar as populações. Falta ambição tanto social, quanto ambiental”, diz.
Para Nascimento, o destaque internacional que as mudanças climáticas e as energias renováveis têm recebido podem desempenhar um papel importante no processo de monitoramento e controle das empresas de energia. “Grandes grupos financeiros e investidores que estarão presentes na COP têm exigido cada vez mais o cumprimento das obrigações sociais e ambientais. Eles têm buscado fazer valer essas promessas”, diz.