Clima e Biodiversidade: correlação entre os desafios, tratados em COPs diferentes

A Colômbia se prepara para receber a COP16 de Biodiversidade, mas a discussão sobre clima fica majoritariamente reservada à COP29, que será realizada em novembro, em Baku, no Azerbaijão. A ciência alerta que a separação de temas pode prejudicar a eficácia de acordos globais.

À medida que se aproximam as conferências da ONU sobre Biodiversidade (COP16), em outubro em Cali, na Colômbia, e sobre o Clima (COP29), em novembro, em Baku, no Azerbaijão, volta à tona o debate sobre a importância de unir essas duas agendas em uma abordagem integrada. Nos compromissos multilaterais e planos governamentais os temas biodiversidade e clima costumam ser tratados separadamente – tanto que existem as duas Conferências.  

Já faz alguns anos que pesquisadores de todo mundo vêm alertando que a crise ambiental global só será solucionada se ambos forem abordados de forma conjunta. Mas esse posicionamento não era tão claro em 1992, quando foram elaboradas as COPs, durante a conferência Rio-92. Thelma Krug, que foi vice-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudança no Clima (IPCC) e é pesquisadora titular aposentada do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), relembra que, nos textos das Convenções, quando foram instituídas, não havia menção à relação explícita entre clima e biodiversidade, e que os relatórios do IPCC só passaram a dar mais ênfase a essa relação em anos recentes. 

“O primeiro relatório de avaliação do IPCC, que é de 1990, menciona de forma muito resumida que uma ‘rápida mudança no clima pode não permitir que as espécies se adaptem e, assim, a biodiversidade poderia ser reduzida’”, destaca a pesquisadora. Mas a intrínseca relação entre biodiversidade e mudanças climáticas se torna cada vez mais clara à medida que o planeta aquece, espécies são impactadas e os eventos climáticos extremos se tornam mais intensos e imprevisíveis. 

Durante a COP15, que ocorreu em 2022 em Montreal, no Canadá, os países participantes definiram que a principal meta é preservar um terço da natureza do planeta até 2030 Foto: Flickr/UN Biodiversity

Nos últimos meses, no Brasil, a Amazônia e o Pantanal, biomas que abrigam grande parte da biodiversidade do planeta, enfrentaram as queimadas mais severas em duas décadas. Só no mês de agosto foram 2,5 milhões de hectares queimados na Amazônia e mais de 634 mil hectares no Pantanal, com incontáveis perdas de fauna e flora. Essa destruição é intensificada pelas mudanças climáticas, que causam secas prolongadas, deixam o solo com baixa umidade e aumentam a frequência e a magnitude dos incêndios. Ao mesmo tempo em que são agravadas pelo clima mais quente, as queimadas contribuem para o aquecimento global ao elevarem as emissões de gases efeito estufa (GEEs). 

O pesquisador Carlos Alfredo Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), pontua que “a comunidade científica já há tempos vem fazendo pressão para que a crise climática e a perda de biodiversidade sejam discutidas conjuntamente no âmbito político, alertando que um desafio não pode ser solucionado sem atacar ao mesmo tempo as causas do outro. Só que ainda há muitos países reticentes em reunir essas duas agendas, e isso vem atrasando ainda mais a busca por soluções”. 

COPs separadas: um problema de origem

De acordo com Joly, no âmbito dos regimes jurídicos internacionais, a origem dessa separação entre as áreas está na forma como as agências intergovernamentais ambientais foram estruturadas. Quando o Rio de Janeiro, no Brasil, sediou a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio+92), foram instituídos dois mecanismos específicos para tratar dos assuntos: a mudança do clima no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e a biodiversidade no âmbito da Convenção de Diversidade Biológica (CBD). Cada convenção quadro também passou a reunir os seus especialistas, com metodologias e conceitos próprios. 

Quatro anos antes da Rio+92, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) havia criado, junto com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o Painel Intergovernamental sobre Mudança no Clima (IPCC), um comitê composto por centenas de cientistas de todo o mundo que passou a avaliar periodicamente o conhecimento científico sobre o tema e a publicar relatórios para dar suporte às decisões políticas sobre o aquecimento do planeta. “Note que naquela época não existia um equivalente do IPCC para a biodiversidade, então naturalmente as políticas sobre os temas evoluíram em ritmos diferentes. A Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos da ONU (IPBES), que passou a cumprir uma função semelhante, só foi criada em 2012”, explica Joly.

Os grandes compromissos internacionais também progrediram em tempos distintos. No regime jurídico climático, foi firmado em 2015 o Acordo de Paris, por meio do qual 195 países se comprometeram em manter o aquecimento global “bem abaixo” de 2 °C, com esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5 °C em relação aos níveis pré-industriais. Já o Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, que seria o equivalente para a biodiversidade, foi assinado somente em 2022, quando 196 nações acordaram em assegurar, entre outras coisas, que pelo menos 30% das áreas terrestres e marítimas do mundo sejam conservadas e restauradas até 2030. 

Sinergia política avança, mas a passos lentos

Seca histórica que atinge diversas regiões da Amazônia desde o ano passado está secando rios e colocando diversas espécies em risco.

Com o passar do tempo e o avanço da ciência sinalizando a relação mútua entre clima e biodiversidade, o tema passou a ter um espaço maior nas análises do IPCC, conta Krug. O sexto e mais recente Relatório de Avaliação (AR6) do IPCC, de 2023, traz uma descrição mais abrangente sobre os impactos do aquecimento global para a biodiversidade, como a projeção de que um aumento de temperatura de 2°C até 2100 colocaria até 18% de todas as espécies em terra sob alto risco de extinção; ponderando que são necessárias medidas de  adaptação para evitar o declínio substancial da biodiversidade como, por exemplo, a expansão de áreas totalmente protegidas e práticas de restauração e uso sustentável da terra; e que nos ecossistemas oceânicos e costeiros, o risco de perda de biodiversidade varia entre moderado (com 1,5°C de aquecimento global) e muito alto (com 2°C).

Para a professora do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) Maria Gasalla, um dos marcos neste processo de conexão entre as áreas foi a publicação, em 2021, de um relatório conjunto entre o IPCC e o IPBES sobre biodiversidade e mudança climática.

Resultado de um workshop realizado durante quatro dias entre 50 dos maiores especialistas mundiais nos dois temas, o documento analisou sinergias entre a proteção da biodiversidade e a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e trouxe como principal conclusão o fato de que as mudanças sem precedentes no clima e na biodiversidade têm se combinado e aumentado as ameaças à vida em suas mais variadas formas e ao bem-estar da população mundial. A única forma de detê-las, explicita o documento, é por meio de uma abordagem conjunta. O relatório também mostrou como ações estritamente focadas no combate às mudanças climáticas podem causar prejuízos diretos ou indiretos à natureza se não considerarem, por exemplo, características dos biomas.

Atualmente, destaca a pesquisadora, é possível observar um esforço cada vez maior de aproximação das áreas, como a declaração conjunta sobre natureza, clima e pessoas, publicada durante a 28ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas (COP28), que ocorreu no final de 2023 em Dubai, nos Emirados Árabes, estabelecendo caminhos para ações coordenadas e destacando a importância de uma aliança entre o Acordo de Paris e o Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal (GBF). Poucos meses depois, em janeiro de 2024, foi feita uma declaração de intenção dos secretariados da UNFCCC e da CBD, propondo, entre outras coisas, resultados colaborativos, ampliação de financiamento para clima e natureza, e uma maior sinergia entre fontes e coleta de dados, métricas, e metodologias. 

No entanto, em um artigo publicado em julho de 2024 na revista Journal of Applied Ecology, pesquisadores da Universidade York, no Canadá, e da Sociedade de Zoologia de Londres, na Inglaterra, afirmaram que até hoje nenhum instrumento governamental foi capaz de integrar essas duas agendas de forma eficaz, e que a falta de estruturas políticas coordenadas e coerentes que alinhem as crises climática e de biodiversidade representa um risco à natureza e à sociedade. 

Para os autores do estudo, uma forma de reduzir essa lacuna de governança é a elaboração de um programa de trabalho focado em integrar e otimizar as ações climáticas e de biodiversidade com medidas como o alinhamento na elaboração dos planos de ação climática e ambiental de cada país. Esse seria um momento propício para a implementação de uma ideia como essa, pois as nações signatárias do GBF devem apresentar seus novos Planos de Ação e Estratégias Nacionais de Biodiversidade (NBSAPs) ainda durante a COP16, enquanto os países que assinaram o Acordo de Paris têm até fevereiro de 2025 para submeter à UNFCCC suas novas versões das Contribuições Nacionalmente Determinadas  (NDCs, na sigla em inglês, que representam as metas de cada país para se alinhar ao acordo). 

Segundo os pesquisadores, para ser eficaz, o programa de trabalho conjunto deve desenvolver um plano SMART (Específico, Mensurável, Atingível, Relevante, com Prazo Definido) que aborde as necessidades financeiras, técnicas e de capacidade associadas à implementação das atividades do programa. Eles indicam que as próximas COPs da Biodiversidade e do Clima oferecem uma oportunidade clara para introduzir essa estrutura de governança.

Em 2022, o Brasil foi um dos 196 países signatários do Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal (GBF, na sigla em inglês), que tem como objetivo combater a perda da biodiversidade, restaurar ecossistemas e proteger os direitos indígenas. Foto: Flickr/UN Biodiversity

Essa necessidade de políticas mais integradas é destacada inclusive pelas Nações Unidas. Em um relatório técnico de 2022 que revisa as interconexões entre biodiversidade e adaptação às mudanças climáticas, especialistas apresentam estudos de caso para indicar como os Planos Nacionais de Adaptação (NAPs) e as NBSAPs podem ser alinhados para aumentar a eficácia dos recursos, reduzir duplicações e fortalecer a resiliência ecológica. Entre as propostas está a ideia de que ambos planos sejam interativos, permitindo atualizações com base nas prioridades identificadas um pelo outro; de que eles sejam coordenados por um mesmo ministério, facilitando a colaboração e o compartilhamento de conhecimentos; e que eles indiquem um caminho para o uso mais eficiente do financiamento nacional alocado para clima e biodiversidade.

Já para o think tank colombiano Transforma, focado na promoção da ação climática, outra estratégia que pode ser eficaz para aproximar as agendas é uma colaboração maior entre a IPBES e o IPCC. Em um relatório recente que traz recomendações para uma maior sinergia entre as áreas, a instituição indica que, apesar do workshop ocorrido em 2021 e das trocas informais de informações, a colaboração entre eles tem sido limitada, e há uma oportunidade importante de avanço neste momento em que ambos estão em processo de elaboração dos seus novos relatórios de avaliação. Uma forma de estimular essa colaboração seria o convite para um trabalho conjunto entre o Painel e a Plataforma no texto de decisão da COP16, indica a instituição. 

Dados científicos embasam necessidade de integração

Krug entende que a forma com que os temas vêm sendo comunicados pela imprensa também afeta a falta de percepção sobre sua conexão. “A urgência climática, a meu ver, é muito melhor comunicada na mídia, por entender-se que o aumento da temperatura média da superfície, as secas prolongadas, as ondas de calor, as inundações têm um impacto direto para o sistema humano. Mas a relação da perda da biodiversidade afetando o sistema climático, incluindo o ciclo hídrico, é bem menos explorada. Não entender a natureza inseparável entre clima, biodiversidade, qualidade de vida e desenvolvimento sustentável implica em continuar a buscar-se soluções para cada tema separadamente, não reconhecendo as retroalimentações inevitáveis”, explica.

Um estudo publicado em 2022 na revista Global Change Biology trouxe uma revisão de pesquisas das últimas duas décadas que mostraram como ações de conservação que interrompem, desaceleram ou revertem a perda de biodiversidade têm o potencial de, simultaneamente, desacelerar significativamente as mudanças climáticas causadas pela ação humana. Redução do desmatamento e restauração de ecossistemas (especialmente ecossistemas de alto carbono, como florestas e manguezais) estão entre as ações de conservação com o maior potencial para mitigar o aumento da temperatura global, indica o estudo.  “As estreitas interligações entre biodiversidade e mitigação das mudanças climáticas (…) raramente são tão integradas quanto deveriam na gestão e nas políticas”, alertam os autores no estudo.

Conclusões semelhantes foram publicadas em 2024 na revista BioScience, em um artigo assinado por pesquisadores brasileiros e americanos que detalha seis pontos-chave onde a conservação da biodiversidade pode contribuir para a mitigação das mudanças climáticas: conservar estoques e sumidouros de carbono; restaurar adequadamente áreas degradadas; conservar fauna e flora locais de maneira integrada; trocar a expansão de áreas agrícolas pelo aumento de produtividade; incorporar a biodiversidade aos modelos de negócios; e unir as COPs de Biodiversidade e Clima. 

Tuiuiú, ave símbolo do Pantanal, é uma das espécies que vem sendo ameaça pelos incêndios florestais no Pantanal, que estão mais intensos por causa das mudanças climáticas. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

No estudo, os autores afirmam que o compromisso firmado pelos países signatários do Acordo de Paris de zerar emissões líquidas até metade do século provavelmente fracassará se questões de biodiversidade não forem totalmente integradas à agenda climática internacional. “Nesse sentido, a integração das conferências ambientais aumentaria as sinergias entre os acordos ambientais multilaterais e as instituições internacionais. Isso promoveria a colaboração entre especialistas em tópicos relacionados, alinhando métodos e modelos e levando a uma melhor avaliação das compensações e interações entre diferentes tipos de impactos ambientais e políticas”, descreve o artigo. 

Gasalla afirma que, apesar dos desafios, as expectativas para as conferências da ONU que se aproximam são otimistas: “Acredito que se a presidência da COP16 mantiver uma política integradora, ou seja, orientando que todas as intervenções reflitam e consideram o nexo clima-biodiversidade, poderemos ter avanços importantes nas soluções e também nas negociações”, opina. 

O doutor em zoologia Bráulio Dias, atualmente Diretor Departamento de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e membro da comitiva do governo que estará presente na COP16, reconhece que há uma necessidade de maior cooperação nas agendas, e explica que o governo está trabalhando internamente com uma sinergia entre os temas tanto no Plano Clima como na Estratégia e Planos de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB), e que a relação clima-biodiversidade deverá ser objeto de duas das decisões a serem adotadas na COP16. “Mas as minutas destas decisões estão repletas de colchetes indicando a dificuldade de chegarmos a consensos”, resume o especialista. 

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