Mais de 80% dos países falham em chegar à COP16 com estratégias atualizadas para preservar a biodiversidade

Só 18% dos países-membro cumpriram o acordo de entregar suas Estratégias e Planos de Ação Nacionais para a Biodiversidade antes da Conferência, comprometendo o avanço dos diálogos sobre a implementação do Marco Global Kunming-Montreal.

Os botos-cor-de-rosa, símbolos da Amazônia e personagens centrais no folclore brasileiro, sempre navegaram o imaginário popular, compondo as lendas que tecem a cultura nacional e colorindo os rios amazônicos com suas tonalidades tão características. Nos últimos anos, porém, cenas perturbadoras têm se tornado frequentes: botos mortos, boiando à deriva, ou desorientados em águas secas e quentes demais para abrigá-los. 

O calor extremo, a seca prolongada e a caça ilegal têm ameaçado levar essa espécie à extinção. Entre 1994 e 2016, a população diminuiu 65%. Em 2023, durante a seca extrema que assolou a Amazônia, centenas de indivíduos morreram em poucas semanas. O que acontece com esses animais não é um caso isolado. Pelo contrário, está se tornando uma regra num planeta cada vez mais hostil para milhares de populações humanas e mais-que-humanas. 

De acordo com a mais recente versão do relatório Planeta Vivo, divulgado em setembro pela organização World Wide Fund for Nature (WWF), nos últimos 50 anos o planeta viveu um “declínio catastrófico” de 73% no tamanho médio das populações de vida selvagem. Só a América Latina e Caribe viram cair 95% dessas populações. O documento, que mede a variação média no tamanho da população de mais de cinco mil espécies de vertebrados, indica ainda que a Terra se aproxima de pontos perigosos de não-retorno, quando ecossistemas inteiros, como a Amazônia, perdem a capacidade de voltar ao estado normal após uma perturbação, e adverte que os próximos cinco anos serão fundamentais para  determinar o futuro das vidas de milhares de espécies na Terra.

Boto-cor-de-rosa encontrado morto durante a seca. Foto: Miguel Monteiro/Instituto Mamirauá

Apesar do alerta, governos de todo o mundo não estão mostrando comprometimento à altura do problema, e o início da 16ª edição da Conferência das Partes da Biodiversidade (COP16) é um exemplo disso. Até o terceiro dia do evento, que começou em 21 de outubro em Cali, na Colômbia, menos de 18% das nações haviam cumprido com o compromisso de apresentar suas Estratégia e Planos de Ação Nacionais para a Biodiversidade (NBSAPs, na sigla em inglês). 

Não há um prazo obrigatório para a submissão das NBSAPs, mas uma das grandes expectativas era que os países o fizessem até o início da COP16. Esses documentos representam os compromissos públicos assumidos pelos países na conservação da biodiversidade e no uso sustentável de seus componentes. Em 2022, na décima quinta edição da Conferência da Biodiversidade (COP15), que ocorreu no Canadá, 195 países e Reino Unido firmaram um pacto inédito contendo metas para “deter e reverter” a perda de biodiversidade até 2030 e “restaurar a harmonia com a natureza” até 2050, que ficou conhecido como Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal (GBF, pela sigla em inglês). 

Cada nação se comprometeu a entregar, até a COP16, sua NBSAP contendo os principais instrumentos em nível nacional para garantir o cumprimento das decisões desse Marco. Aqueles que não conseguissem entregar o documento na íntegra deveriam enviar pelo menos uma atualização dos seus planos nacionais. Alguns submeteram metas específicas ou planos pontuais, no entanto, até o início da conferência, apenas 35 países haviam cumprido o prazo de submissão do documento completo. 

Entre os 17 países mais ricos em espécies do planeta, que respondem a 70% de toda a biodiversidade, apenas cinco submeteram sua NBSAP antes do início da conferência: Austrália, China, Indonésia, Malásia e México. As três nações que detêm a maior parte da floresta amazônica – Brasil, Peru e Colômbia, também falharam em produzir novos planos antes do início das negociações. Destes, somente a Colômbia anunciou um plano já no primeiro dia da conferência. O Peru afirmou, em nota, que irá apresentar ainda durante a COP16 sua Estratégia Nacional de Diversidade Biológica para 2050 e seu Plano de Ação para 2030, contendo 5 objetivos estratégicos com 29 metas nacionais e 143 ações. Já o Brasil, nação mais biodiversa do planeta, indicou que só irá concluir o processo de elaboração no final deste ano ou início de 2025. 

Outras dezenas de países também afirmaram que não entregarão seus documentos atualizados durante o encontro, por diversas razões. No caso da Costa Rica, por exemplo, a representante do país na CDB, Eugenia Arguedas Montezuma, explicou que atual Estratégia Nacional de Biodiversidade do país foi apresentada em 2016 e é válida até 2025, e que neste ano houve um alinhamento da mesma com o Quadro Kunming-Montreal, porém que só posteriormente será feita a publicação de um documento atualizado. Já a delegação da Guatemala se limitou a dizer que o documento ainda está em processo de avaliação técnica. 

O cenário preocupa especialistas, pois até hoje o mundo não conseguiu cumprir nenhuma das 20 metas estabelecidas pela Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (CDB) para o período 2011-2020. “Já estamos atrasados e não submeter as NBSAP pode sinalizar um fracasso futuro na missão de parar e reverter a perda de biodiversidade”, afirma o gerente de políticas públicas do WWF Brasil, Michel Santos. 

Abertura da COP 16 em Cali, Colômbia. Credito: UN Biodiversity/FLICKR

Para o especialista, o atraso na elaboração e entrega dos documentos ocorre por diversos fatores, entre eles instabilidade política, falta de prioridade para a agenda, dados insuficientes para elaboração de planos e falta de financiamento. Este último ponto é destacado também por Edgar Fernández, membro da equipe de Diplomacia Climática do think tank colombiano Transforma. “Se muitos países em desenvolvimento não apresentaram suas NBSAPs revisadas ou atualizadas, o problema pode estar relacionado a uma limitação nas capacidades técnicas e financeiras dessas nações, e pode ser um reflexo da grande lacuna de financiamento para a biodiversidade, que é estimada em torno de US$ 700 bilhões por ano”, diz.  

A redução dessa lacuna de financiamento até metade do século foi, inclusive, uma das quatro grandes metas estabelecidas no Marco Global de Biodiversidade, que estipulou a criação de um fundo sobre biodiversidade para países em desenvolvimento que deveria acumular US$ 20 bilhões anuais até 2025 e US$ 30 bilhões anuais até 2030. Em agosto de 2023, oito meses após a COP15, o Fundo-Quadro Global para a Biodiversidade (GBFF) chegou a ser efetivamente criado, porém até o momento apenas sete países desenvolvidos contribuíram, totalizando um valor inferior a US$ 250 milhões.

Mas Fernández entende que o problema no atraso das entregas vai além, e passa pela falta de um senso de urgência em escala local e global. “Em geral, continua existindo uma grande ignorância nas mais altas esferas políticas sobre a importância da biodiversidade para a resiliência e a saúde dos ecossistemas que nos oferecem serviços essenciais para a vida e o bem-estar humano. Por isso, as prioridades de desenvolvimento são contrapostas à proteção da biodiversidade e dos ecossistemas, em vez de encarar esses dois como elementos que estão intimamente entrelaçados”, diz o especialista.

Possível atraso nas negociações

As negociações da COP16 iniciaram com alertas importantes de líderes globais. O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, reiterou a necessidade de repensar o modelo econômico atual como única forma de “manter a vida e a humanidade no planeta”. Já o secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, destacou, por vídeo, que desde a conquista do Marco Global da Biodiversidade (GBF), os avanços têm sido insuficientes. “Não estamos no caminho certo”, expressou. “Nossa tarefa nesta COP é passar das palavras às ações”. 

A fala de Guterres vai ao encontro do que especialistas e organizações da sociedade civil têm alertado: de que a falha de dezenas de países na entrega das NBSAPs possa prejudicar um dos principais objetivos da Conferência, que é a implementação do GFB. A expectativa era de que o encontro em Cali fosse o primeiro momento de observação e análise sobre as estratégias nacionais para que se identificasse se elas apresentam o nível de ambição necessária aos desafios globais de conservação da biodiversidade e se garantem, de forma coletiva, o alcance das metas do GBF – entre elas a de proteger 30% das áreas terrestres e 30% dos oceanos até 2030; reduzir o impacto de espécies invasoras; combater a poluição por agrotóxicos e plástico; promover o manejo sustentável da agricultura e incluir povos indígenas e comunidades tradicionais nas tomadas de decisões.

“Infelizmente teremos uma discussão incipiente nesse ponto. A tarefa de avaliar se o progresso feito até aqui é suficiente para o alcance das metas do Marco Global de Biodiversidade ficará comprometido”, alerta Santos.

Esse atraso na avaliação dos documentos e na elaboração de estratégias de implementação pode fazer com que se repita o fracasso do último conjunto de regras globais de biodiversidade, as metas de Aichi, que foram estabelecidas em 2010 e traziam planos para o período de 2011 a 2020. “Foram 20 metas acordadas na COP10, no Japão, e pouquíssimas delas foram implementadas em alguns poucos países. A maior parte não foi. Então os países tiveram que abandonar o acordo e reescrevê-lo. Isso mostra a falta de percepção das pessoas sobre a conexão da biodiversidade com a vida delas. Hoje vemos que a informação não é suficiente para mobilizar. O que aconteceu depois da COP10 deveria ter sido um aprendizado, mas pelo jeito ainda não aprendemos”, reflete a bióloga Nurit Bensussan, consultora do Observatório das Economias da SocioBiodiversidade (OSocioBio).

No entanto, para Bensussan, o mais importante neste processo não é a entrega dos documentos completos dentro prazo, mas sim a qualidade e a forma como são elaborados. “O que realmente importa é como você constrói a estratégia nacional e garante que ela será implementada. Se você conseguir estabelecer dois objetivos de uma maneira participativa, arrancando compromisso de setores predatórios da biodiversidade, por exemplo, o resultado pode ser muito mais eficiente do que um documento extenso, porém que não é implementado, como foram todos os planos brasileiros até agora”, destaca.

Por do sol no Rio Negro, Amazonas. Brasil está entre os países que não apresentará um novo NBSAP na COP16

Brasil assume atraso na entrega

Bráulio Dias, diretor do Departamento de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente e responsável pelo processo de construção da nova NBSAP (ou EPANB na sigla em português) brasileira, afirmou que a versão recente do documento ainda está “em fase de consolidação e aprovação”. Questionado sobre o motivo da demora, afirmou apenas que “atualizar uma EPANB de forma séria e participativa não é tarefa simples”.

O documento que está sendo elaborado pelo governo brasileiro neste momento corresponde à terceira atualização; a primeira versão é de 2000. De acordo com Bensussan, nenhuma delas teve o resultado de implementação esperado porque não houve adesão dos principais setores que destroem a biodiversidade. “Um documento desses precisa ter adesão do agronegócio, precisa firmar compromissos de acabar, por exemplo, com subsídios para a soja, que é altamente predatória, mas esses setores não estiveram e parecem não estar envolvidos na elaboração dos planos nacionais. Se você não tem esse compromisso de quem mais destrói a natureza, como você vai deter a perda de biodiversidade?”, diz.

A elaboração do novo documento incluiu um período de consulta pública online, além de reuniões setoriais e multisetoriais. Bensussan, que acompanhou de perto essas etapas, afirma que “não há bons motivos para achar que essa nova versão irá funcionar melhor que as anteriores, porque até o momento o governo não conseguiu arrancar compromissos de quem destrói o meio ambiente. E setores essenciais para a conservação da biodiversidade, como povos indígenas e comunidades tradicionais, não estão se sentindo contemplados no texto que circula atualmente entre os ministérios”, diz a bióloga. 

Durante a COP16, sem a EPANB  em mãos, o governo brasileiro apresentou um documento alternativo, detalhando as contribuições e avanços do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para o cumprimento das metas de Kunming-Montreal feitos até o momento, que inclui o compromisso com desmatamento zero até 2030, restauração de 12 milhões de hectares de vegetação nativa e o avanço nas políticas de repartição de benefícios para as populações tradicionais. 

No dia 22 de outubro, países discutiram sobre as NBSAPs. Crédito: UN Biodiversity/FLICKR

COP16 pode dar sinais de avanço

Apesar dos entraves nas negociações e da falta de comprometimento, até o momento, por grande parte dos países, especialistas acreditam que o encontro, que vai até o dia 31 de outubro, ainda pode trazer resultados positivos, desde que haja um diálogo franco e construtivo sobre financiamento. “A COP16 é uma grande oportunidade para que os países desenvolvidos deem sinais claros de que estão no caminho de alcançar a meta de incrementar o financiamento relacionado à biodiversidade para os países em desenvolvimento e chegar a pelo menos 20 bilhões de dólares por ano até 2025”, diz Fernández.

Frente ao devastador cenário de perda de biodiversidade, que se agravou nas últimas cinco décadas e está levando o planeta ao ponto de não-retorno, obter avanços nas negociações da COP16 para a implementação das 23 metas do Marco Global de Biodiversidade e para a elaboração de ações concretas que lidem com as causas da perda de biodiversidade se tornam centrais em um mundo que ruma ao colapso. Resta saber se os alertas da natureza serão suficientes para mobilizar os líderes globais rumo a um futuro possível para humanos e mais-que-humanos.  

Garça-branca-grande (Ardea alba) no manguezal do Rio Macacu, que desagua na Baía de Guanabara, na Estação Ecológica da Guanabara, na Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapi-Mirim. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

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