No litoral oeste do estado do Maranhão (MA), no Brasil, a cerca de 150 quilômetros da capital São Luís, está a Ilha dos Lençóis. O território, conhecido pelo culto ao Rei Sebastião e pela maior população de albinos do Brasil, é também o berço do primeiro projeto de energias renováveis híbridas do país.
A Ilha fica a quatro horas de barco do porto de Apicum-Açu, melhor ponto de partida. A região não é conectada ao Sistema Interligado Nacional (SIN) de energia, uma rede que liga todos os estados brasileiros, à exceção de Roraima, por meio de linhas de transmissão elétrica. Foi a criação de uma rede autônoma – as chamadas “microrredes” – que garantiu soberania energética aos ilhéus, 15 anos atrás.
O sol quente e o vento forte, que molda as características dunas da ilha, motivaramo início de um projeto de energia eólica e solar. Naquela época, a comunidade vivia à luz de velas ou de lamparinas, conta a dona de casa Lauraneide Foicinha Lopes dos Santos, 57 anos, que mora na ilha há 30 anos. “Quando meu marido e eu chegamos, não existia energia nem geradores. Era só vela ou lampião de querosene”.
A comunidade, que tem cerca de 100 casas, é movimentada pela pesca artesanal. O marido de Santos é um desses trabalhadores, cujo foco é o camarão. Sem energia elétrica, não havia geladeira para conservar os mantimentos. O peixe costumava ser salgado e vendido seco nas capitais, e os moradores compravam gelo para a conservação do que consumiam, o que acabava custando caro, porque dependiam do transporte de barqueiros. “Era uma vida mais difícil”, lembra a moradora.
Com o tempo, a prefeitura de Cururupu, município ao qual a ilha pertence, colocou um gerador a diesel que funcionava apenas das 18h às 22h.Os moradores dividiam o valor e compravam combustível para abastecer o gerador, que servia para o uso comum. Quando acabava a energia, recorriam às velas novamente. Alguns foram comprando seus próprios geradores. Quem não tinha, pedia auxílio aos vizinhos, e caso quisessem assistir a algum jogo de futebol, novela ou telejornal, reuniam-se na casa uns dos outros.
Projeto-piloto e engajamento da comunidade
Em 2005, o Ministério de Minas e Energia (MME) propôs a um grupo de engenheiros e pesquisadores da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que estudava energias renováveis, o desenvolvimento de um projeto-piloto que testaria se o modelo era técnica e economicamente viável.
O objetivo era levar eletricidade a áreas remotas a partir de microrredes, cujo modelo foi a semente que ajudou, posteriormente, a ampliar o programa federal Luz Para Todos e a criar o programa Mais Luz para a Amazônia.
Há quinze anos, as discussões sobre as energias eólica e solar eram muito incipientes no Brasil. Além disso, as tecnologias dependiam de equipamentos importados e ainda não haviam sido testadas em escala – havia apenas iniciativas para abastecer escolas comunitárias ou casas individuais.
Lençóis foi escolhida para a experiência. E embora a população local lutasse para ter energia, o projeto foi visto com reticência no início. As promessas sobre acesso integral à energia elétrica eram feitas há anos por gestores públicos, mas nunca se cumpriam, e a ideia parecia ser mais uma paliativo.
Os moradores, então, ampliaram o diálogo com a Universidade. “Fizemos várias reuniões com os professores e eles explicaram tudinho, como funcionava a geração da energia limpa, mostraram como seria a instalação e os cuidados, o consumo de cada casa e assim fomos participando”, conta o pescador Sebastião Bastos, 51 anos, que nasceu e cresceu na ilha e é um dos moradores contratados para fazer a manutenção dos equipamentos.
Sistema híbrido
A iniciativa começou com a instalação de painéis solares, na época com potência de 30 quilowatts (KW), três turbinas eólicas, cada uma de 10 KW, e um banco de bateria de 600 ampère-hora e 240 volts (V). Também foi mantido o gerador a diesel para garantir que, em situações atípicas, a comunidade não ficaria desabastecida.
A opção foi por um sistema híbrido – energia eólica combinada com solar. De acordo com o professor da UFMA Luiz Antônio de Souza Ribeiro, à época coordenador do projeto, essa foi a solução encontrada para garantir a complementaridade. “Enquanto a geração solar só funcionava durante o dia, a partir das 7h da manhã naquela região até 17h, a eólica funcionava em qualquer hora, então as fontes se complementavam”, explica.
Naquela época, as baterias usadas para o armazenamento da energia gerada pelos painéis fotovoltaicos eram feitas de chumbo-ácido e não eram potentes o suficiente para armazenar, sozinhas, toda a energia gerada por placas fotovoltaicas. Agora, são usadas baterias de íon-lítio, tecnologia mais sofisticada e com maior potência.
“Quando chegamos lá, nem o gerador funcionava mais. Fizemos uma microrrede porque era impossível que as linhas da concessionária de energia chegassem. Não sabíamos como faríamos o projeto e na época não existiam no mercado os materiais necessários”, explica Ribeiro.
Toda a infraestrutura foi construída do zero e em território nacional. Os equipamentos foram desenvolvidos em parceria com uma empresa de Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul, no outro extremo do país. A fabricação levou mais de um ano, e um dos requisitos era que não houvesse itens importados para facilitar a manutenção, reduzir os riscos de implementação e garantir a continuidade da iniciativa.
O projeto previa para cada casa acesso a geladeira, freezer, televisão e lâmpadas. A iniciativa levou cerca de três anos, entre 2005 e 2008, para trazer os primeiros resultados concretos.
Desafios e participação da comunidade
A logística foi uma das maiores dificuldades. Todo o material foi trazido em barcos. Por se tratar de uma reserva extrativista, nem a areia para a construção das estruturas pôde ser a da ilha.
“O desafio era como carregar uma turbina eólica de quase uma tonelada em um barquinho de pescador, como descer as estruturas em uma ilha que não tem uma rampa e que, para carregar, precisa reunir 30 pessoas da comunidade e levar no braço”, conta o engenheiro e empresário João Victor Caracas, que é doutor em energia pela UFMA e participou do projeto por 10 anos, chegando a morar na ilha no princípio.
Os moradores atuaram na instalação dos equipamentos, no carregamento das turbinas, na eletrificação dos materiais e na “passagem” de cabos. Também houve encontros para a capacitação das pessoas.
“A nossa comunidade foi muito participativa, tudo que foi trazido para a instalação da energia passou pela comunidade, aconteceram conversas e fomos ensinados a mexer nos aparelhos”, conta Santos. Dois moradores, que acompanharam o processo desde o começo, foram contratados pela concessionária de energia da região para fazer a manutenção em situações emergenciais.
Depois que a equipe da universidade foi embora, os moradores criaram uma associação para definir quem faria a administração do projeto. Atualmente, a concessionária Equatorial Energia faz a gestão junto com a comunidade.
Com as bênçãos do protetor
Segundo os moradores, quem abençoou a decisão foi o Rei Sebastião, protetor das terras, mares e areias de Lençóis. Na região, existe a crença de que o rei de Portugal Dom Sebastião I, morto na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos (1578) e cujo corpo nunca foi encontrado, fugiu para a ilha e vaga pelas dunas montado em um cavalo branco.
A crença chegou ao Brasil com os imigrantes portugueses e encontrou no nordeste um terreno fértil, de acordo com artigo da professora de Sociologia e Antropologia da UFMA, Madian de Jesus Frazão Pereira.
“Aqui na comunidade é uma tradição muito antiga. Quando as pessoas chegam, pedem permissão para ficar. Se o projeto não tivesse o apoio dele, não seria possível”, conta Bastos.
Mudanças ao longo dos anos
Há alguns anos, o sistema eólico foi descontinuado, embora a estrutura siga na ilha. “Essas iniciativas evoluíram para projetos solares por uma questão de custo e robustez”, afirma Caracas. “Se bem instalada, a energia solar não demanda manutenções grandes, e em ambientes isolados, se mostrou ser muito melhor”.
Agora, a energia usada à noite vem da ampliação da capacidade de geração das placas solares inicialmente instaladas e do armazenamento de energia em baterias mais sofisticadas do que as que existiam em 2008. Com isso, foi possível abastecer a região apenas com energia solar.
O engenheiro observa que a experiência na ilha trouxe uma nova visão, na época, para o que preconizava a literatura acadêmica sobre buscar a complementaridade das fontes. “A experiência se sobrepôs à teoria. Para projetos de pequeno e médio porte e faixas de potência reduzidas, o custo de geração solar é menor que o da geração eólica, que ficou mais restrita a grandes parques e maior escala”, afirma.
O sucesso da iniciativa serviu de modelo para outras. No próprio estado do Maranhão, a equipe desenvolveu um projeto na Ilha Grande.
Benefícios e limitações
saúde foram os maiores benefícios do projeto. Antes de 2008, a comunidade tinha acesso apenas a um “orelhão” – telefone público instalado nas ruas.
Hoje, os moradores têm telefone, internet, televisão, celulares e podem ter computadores. Outro benefício foi a conservação de medicações e vacinas no posto de saúde, que passou a poder atender também à noite.
“Tudo melhorou, nunca mais ficamos sem energia por mais de um ou dois dias. Aqui nós temos visita de médico quase todo mês, o que antes era muito difícil, temos um postinho com mais estrutura, e o colégio tem computador, internet”, conta Bastos.
Um dos desafios para a comunidade é o custo da energia, que aumentou ao longo dos anos. O uso de novos equipamentos eletrônicos foi crescendo entre as famílias, o que elevou o consumo. Além disso, houve reajustes tarifários que entraram na formação de preço. “Da média de R$ 50 mensais pela energia em tempo integral nos primeiros anos do projeto, o valor chega a ser cinco vezes maior em alguns meses hoje em dia”, relata Santos.
“Quem consome mais, paga mais. Quem consome menos, paga menos”, observa Bastos ao contar que a medição do consumo é feita em cada domicílio todo mês. O morador destaca ainda que o governo subsidia parte da conta dos moradores por meio da Tarifa Social de Energia Elétrica.