Biogás cresce 800% no Brasil, mas produção não ultrapassa 1,5% do potencial do país

Setor é subutilizado na transição energética. Questões regulatórias e de infraestrutura são alguns dos entraves para o desenvolvimento do setor no país.

No município mineiro de Manga, localizado a 700 km de Belo Horizonte, o produtor Edvaldo Lôpo, proprietário da Fazenda Vista Alegre, teve a iniciativa de instalar, há cinco anos, um biodigestor artesanal para produzir metano a partir dos dejetos de suínos e vacas leiteiras de sua propriedade. Atualmente, ele usa o biogás para cozinhar em casa e em um local de abate na fazenda, economizando cerca de R$ 360 por mês em botijões de gás. 

A experiência de Lôpo em sua fazenda é só mais uma entre as milhares existentes no Brasil. Segundo estudo liderado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), entre 2011 e 2020, a produção de biogás cresceu quase 800% no país, uma boa notícia à necessária transição energética, já que tanto o biogás quanto o biometano são alternativas ao gás natural e aos derivados de petróleo.

Produzidos a partir da decomposição de materiais orgânicos, como dejetos de animais e rejeitos da agricultura, por exemplo, tais fontes de energia podem substituir a extração de combustíveis fósseis do solo, além de dar um destino adequado a rejeitos da agropecuária, agroindústria e aterros sanitários. 

Entraves regulatórios e de infraestrutura, no entanto, são barreiras para o desenvolvimento do setor em solo brasileiro. Atualmente, a produção é de apenas 1,3 bilhão de nanômetros cúbicos (Nm³), cerca de 1,5% do potencial nacional.

Os custos de produção do biometano poderiam ser de € 70 (R$ 433,88) por MWh em média. A produção em grandes instalações é mais barata do que em instalações menores. Crédito: Divulgação ABiogás

Potencial desperdiçado

Estudo lançado em junho passado sobre o setor de biogás e biometano mostrou que o país tem capacidade para produzir mais de 84 bilhões de Nm³ de biogás por ano, o que o colocaria na posição de líder mundial na produção deste tipo de energia.

Para a Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), o produto conseguiria ampliar a geração de energia sem a necessidade de plantar ou inutilizar áreas de cultivo, apenas aproveitando, para fins energéticos, os resíduos hoje desperdiçados e que já estão gerando emissões de gás metano.

“O potencial brasileiro é de tal magnitude, que o país pode se destacar entre os maiores produtores mundiais se houver o adequado aproveitamento da matéria-prima”, afirma Geraldo Lavigne de Lemos, um dos autores do estudo da USP e pesquisador no Research Centre for Greenhouse Gas Innovation (RCGI).

Matéria prima em abundância

Em 2023, o país registrou a operação de 338 novas plantas de biogás e biometano, um aumento de 32% em relação a 2022, segundo o Centro Internacional de Energias Renováveis e Biogás (CIBiogás). 

Atualmente, ainda segundo o CIBiogás, 1.365 plantas estão cadastradas no país, com o Paraná concentrando 54% dessa produção (347 plantas), seguido por Minas Gerais (280), Santa Catarina (85) e São Paulo (83).

Matéria-prima para a geração de ambos os produtos não falta no Brasil. De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ​a agropecuária e a agroindústria são os setores com produção mais relevante na geração de resíduos. Com 234 milhões de cabeças de gado e 5 milhões de porcos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não poderia ser diferente. 

Além disso, os rejeitos sólidos e efluentes urbanos também podem ser aproveitados para a produção dos gases. Com tanta matéria prima e tecnologia em desenvolvimento, estima-se que, em 2031, o potencial técnico de produção supere os 97 bilhões de Nm³ por ano.

Além disso, com apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o Brasil inaugurou recentemente a primeira planta de produção de petróleo sintético a partir do biogás, uma nova utilização do gás e que o coloca ainda mais em destaque no processo de transição energética.

A digestão anaeróbica não tem escala mínima de implementação e seu potencial máximo é limitado apenas pela quantidade de matéria-prima disponível. Crédito: Divulgação ABiogás

Entraves ao setor

A Associação Brasileira do Biogás (ABiogás) mantém, em sua página, um Mapa Regulatório do Biogás e Biometano atualizado periodicamente. Uma análise do documento permite inferir que o Brasil tem avançado em nível federal e estadual para estabelecer um ambiente normativo seguro para o setor. 

Muitos ainda são, no entanto, os desafios a serem enfrentados para efetivar essa expansão. Segundo Lemos, da USP, tais desafios são não só de ordem regulatória,  mas também econômica e de infraestrutura.

“É importante que os desafios econômicos e de infraestrutura sejam enfrentados, com o estabelecimento de políticas públicas de incentivo para o desenvolvimento do setor e a ampliação da malha de dutos e tubulações”, diz o pesquisador.

Para Renata Isfer, presidente executiva da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), é necessário também que o Brasil reduza os impostos que incidem sobre o setor, crie corredores sustentáveis e certificados de garantia de origem e priorize a Pesquisa e Desenvolvimento em renováveis no país como um todo. 

"O biogás é uma alternativa para promover a cozinha limpa, especialmente para famílias de baixa renda", diz Renada Isfer, da ABiogás. Crédito: Divulgação ABiogás

Só assim, questões tão básicas como a garantia de uma vida digna, com saúde e comida na mesa, podem ser endereçadas. “Um dos grandes problemas no Brasil e no mundo é a poluição causada pela cozinha com lenha e combustíveis fósseis, responsável por 4 milhões de mortes por ano. O biogás é uma alternativa para promover a cozinha limpa, especialmente para famílias de baixa renda”, aponta.

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a estruturação do ambiente normativo também é fundamental para conceder a segurança jurídica necessária para o desenvolvimento do setor. O biogás e o biometano serão favorecidos se Estados, Municípios, Distrito Federal e União atuarem de forma colaborativa, no âmbito de suas competências, dizem.

“Alguns estados brasileiros, como São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, já possuem políticas específicas para o biogás e o biometano e/ou estão desenvolvendo novas políticas. No entanto, ainda há muitos estados que carecem de uma regulamentação mais clara e abrangente”, reforça Heleno Quevedo de Lima, especialista em Biogás e fundador do Portal Energia e Biogás.

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) tem atuado de forma decisiva para avançar no setor, com destaque para a Resolução ANP nº 906/2022, sobre biometano oriundo de produtos e resíduos orgânicos agrossilvopastoris e comerciais, e a Resolução ANP nº 886/2022, sobre o biometano oriundo de aterros sanitários e de estações de tratamento de esgoto. 

Apesar dos avanços, muito ainda precisa ser feito, dizem os especialistas no setor, incluindo o barateamento da tecnologia.

Caminho para a descarbonização

As atividades econômicas humanas geram, anualmente, mais de 105 bilhões de toneladas de resíduos orgânicos, com a consequante emissão de metano, segundo estimativas da Associação Mundial do Biogás. Ao reciclar esses resíduos orgânicos, o setor pode permitir que os países reduzam em 10% as emissões mundiais de gases de efeito estufa até 2030.

Em nível global, a Alemanha é um dos líderes mundiais no setor, com uma longa história de produção e utilização de biogás e biometano. Segundo Lima, do Portal Energia e Biogás, outros países como a Suécia e a Dinamarca também possuem políticas e programas bem-sucedidos para o desenvolvimento do biogás.

No Brasil, os primeiros projetos de biogás tiveram início nos anos de 1970. Um dos fatores que motivaram a criação desses projetos foi a crise energética registrada no período e a necessidade do desenvolvimento de soluções para saneamento rural. 

A partir de 2010, a produção de biogás e digestato – material remanescente após a digestão anaeróbica de uma matéria-prima biodegradável – ganhou escala no departamento de Suínos e Aves da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), com a instalação do Laboratório de Biogás do Parque Tecnológico de Itaipu (PTI), atualmente CIBiogás.

“É importante observar as lições aprendidas por outros [países] para, a dessas experiências, fazer a necessária adaptação do conteúdo à realidade nacional, sem afastar o fundamental desenvolvimento de modelo brasileiro, ajustado aos objetivos que o país tem nos ambientes interno e externo”, reforça Lemos, pesquisador da USP.

O biogás bruto produzido no Brasil consiste em 50-75% de metano, 25-50% de dióxido de carbono e 2 – 8% de outros gases, como nitrogênio, oxigênio e gases residuais, como o  sulfeto de hidrogênio (H2S), amônia (NH3) e hidrogênio, por exemplo.

A solução tecnológica encontrada para a produção de biogás e biometano foi a digestão anaeróbica dos resíduos orgânicos em um ambiente livre de oxigênio. Seu processo também pode gerar emissões de gases estufa, mas, se manejado corretamente, tais gases são controlados e os composto resultante pode ser usado para várias finalidades, como produção de vapor, aquecimento, geração de eletricidade, injeção na rede de gás natural e combustível para veículos.

Edvaldo Lôpo, agricultor mineiro que abre esta matéria, está feliz com os resultados alcançados com o biodigestor artesanal instalado em sua propriedade. “Com o reaproveitamento dos dejetos, apenas com o biodigestor artesanal, consigo usar o gás metano para as atividades da sede da propriedade. Economizo o equivalente à compra de dois botijões de gás de cozinha”, compartilha.

Ele pretende ampliar a produção e o consumo de biogás para a própria fazenda, com a substituição da lenha e para geração de eletricidade por meio de um gerador a gás. Entretanto, os altos valores de investimento nos equipamentos e a falta de incentivos para pequenas propriedades são um entrave.

“Preciso investir cerca de R$ 300.000 para triplicar o tamanho do biodigestor. Para a instalação de uma geomembrana, é necessário o aporte de, pelo menos, R$ 100.000; mais R$ 100.000 para equipamentos de movimentação e separação de dejetos, e R$ 100.000 para uma caldeira ou gerador”. 

Filiado à Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais, Lôpo acredita que o biogás tem um grande potencial na região do norte de Minas Gerais, especialmente entre pequenos agricultores. 

Para que isso se torne uma realidade, no entanto, não só em solo mineiro, mas em todo o país, o Brasil vai precisar olhar de perto para todo o potencial que tem desperdiçado.

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