Energia solar ajuda pescadores a conservarem peixe e açaí, em comunidades isoladas na Amazônia

Moradores do arquipélago de Bailique, no Amapá, são responsáveis pela manutenção dos equipamentos, que já operam há cinco anos

Para chegar às comunidades do arquipélago Bailique, no estado do Amapá, no Brasil, é preciso percorrer cerca de 160 quilômetros de barco, durante 12 horas pelo rio. São oito ilhas e 51 vilas de pescadores, divididas em quatro pólos. Com acesso difícil, ainda que esteja localizado na capital Macapá, o arquipélago lida com as dificuldades próprias de comunidades em áreas remotas na Amazônia. Uma delas é a falta de energia elétrica. 

Por mais de uma vez, projetos de geração de energia solar foram implementados na região, mas, sem planos de manutenção, acesso a materiais e mão-de-obra qualificada, os moradores voltavam a ficar no escuro. 

A grande virada foi quando a comunidade foi, de fato, envolvida na busca de soluções. É um exemplo de sucesso na região o projeto “Bailique Solar”, do Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas e da Auto Sustentabilidade (IDEEAS), construído junto à Associação de Comunidades Tradicionais do Bailique (CTB), com o apoio do Greenpeace e parceria da Universidade Federal do Rio Grande (FURGS)

Sem manutenção nos sistemas instalados, moradores voltavam a ficar no escuro. Foto: Projeto Balique Solar

Em Bailique, até 2019, a falta de energia impactava as principais atividades econômicas locais: pesca e produção de açaí. Então foi criado o projeto para instalar, em quatro comunidades, uma “fábrica de gelo” composta por freezer e sistema fotovoltaico. Quatro anos depois as fábricas seguem funcionando, produzindo até 80 pedras de gelo de 500g por semana a uma temperatura de -15 graus.

A decisão de começar por este equipamento foi tomada coletivamente. Conseguir produzir o próprio gelo foi um ganho para os moradores. Isso passou a evitar atravessadores na compra do material para a conservação do pescado e do açaí. Antes, quem era da ilha de Arraiol, por exemplo, precisava enfrentar uma viagem de duas horas de barco até comunidades maiores como Vila Progresso, Macedônia e Itamatatuba para comprar o gelo, e só então vender os produtos em Macapá. 

Comunidade produz o próprio gelo, fundamental para armazenamento de açaí e peixe. Foto: Projeto Bailique Solar

Além do uso do diesel para abastecer geradores, o combustível também era usado no barco para esse transporte diário de gelo. Antes se gastava seis litros de combustível e R$ 30 por viagem, que eram diárias. Segundo uma pesquisa do IDEEAS, que ouviu 46 moradores, o consumo semanal de gelo é de 23kg em média e a despesa média mensal, incluindo o transporte, somava R$ 131,56 por família – cerca de 14,2% da renda média, de R$ 926,15. Com a instalação da fábrica, a redução foi considerável.

O projeto foi realizado em parceria com o Centro Vocacional Tecnológico da CTB. Nas assembleias, os moradores dos quatro polos do arquipélago debateram e aprovaram a proposta. Quando seguiu para a fase de implementação, moradores da comunidade foram capacitados e instalaram o sistema em apenas dois dias. “O arranjo produtivo local é todo esse esquema de atores trabalhando para a energia funcionar”, explica Ligia Kawata, coordenadora de projeto no IDEEAS. 

Comunidade aprende sobre energia solar. Foto: Projeto Bailique Solar

Produção de gelo

A fábrica funciona 24h por dia no verão amazônico (julho a novembro), e na época de chuvas (dezembro a junho), os equipamentos são desligados por até quatro horas para economizar bateria.

Depois da fábrica de gelo, o sistema solar se expandiu na comunidade e agora é responsável por parte do abastecimento (o diesel ainda é usado). Muitos dos dez mil moradores do arquipélago passaram a investir em um sistema fotovoltaico doméstico para carregar celulares, ver televisão e ter uma geladeira. “Uma grande dificuldade era que a gente não podia ter uma comida fresca, estragava”, conta Juventino dos Santos Costa, que viu a própria vida mudar drasticamente com o projeto.

Antes vaqueiro, ele agora é agente técnico, instala e faz os reparos de equipamentos de energia solar na região. Os kits que ele instala custam de R$ 3.500 a R$ 12 mil reais. O mais básico atende a uma televisão, um ventilador, e dois pontos de luz das 8h às 20h. 

A produção de gelo é feita durante todo o verão amazônico. Foto: Projeto Bailique Solar

Além da fábrica de gelo, o projeto de módulos de energia solar no Bailique também foi instalado na escola local e no posto de saúde. Para um coletivo de 32 parteiras, que fazem partos domiciliares, foram distribuídas lâmpadas com energia solar portáteis, a fim de substituir as lamparinas e velas, que eram usadas nos partos feitos à noite.

O professor Alan Ubaiara Brito, da Universidade Federal do Amapá (Unifap), que estuda a implantação da energia solar na Amazônia, atribui parte do sucesso do projeto ao processo de escuta da comunidade. “Em outras localidades, ao ter acesso ao sistema fotovoltaico de forma assistencialista e sem participação, muitas pessoas acabam fazendo mal uso da bateria, desviando para outros fins e armazenando de forma inadequada”, conta.

Acesso à energia ainda não é completo

A energia solar transformou a realidade em Bailique, mas ainda está aquém da necessidade da comunidade. Em Arraiol, a fábrica de gelo não consegue atender plenamente o barco da cooperativa, que é capaz de carregar cinco toneladas de carga, como explica o líder comunitário José Cordeiro dos Santos Lopes, o Zeca. “A gente precisaria aumentar [a produção de gelo] em 20, 30 vezes. Por mais que faça o gelo rápido, também não tem espaço para armazenar muito gelo”.

Outra questão é que o sistema não permite grande armazenamento de energia. “Como a gente vive numa região em que nós temos, por exemplo, cinco meses de verão e sete meses de chuva, esse período chuvoso fica comprometido o funcionamento. Porque quando se passam dois dias sem fazer sol, as baterias já descarregaram”, conta Zeca.

Placa solar instalada na comunidade. Foto: Projeto Bailique Solar

Dependência do gerador a diesel e impactos sociais

Comunidades em áreas remotas na Amazônia muitas vezes dependem de geradores a diesel. “Esses equipamentos são comprados pelos moradores, ou fornecidos pelo governo ou concessionárias, o que pode criar uma relação de clientelismo com políticos”, aponta Kawata. No Bailique, quem não tem acesso a energia solar, depende da energia do gerador, que é ligado das 18h às 22h.

Ela explica que atualmente fazer a manutenção de um gerador à diesel é mais simples para a comunidade, pelo amplo conhecimento da tecnologia e acesso a fornecedores.

Posto comunitário recebe energia solar, mas muitas casas ainda dependem de geradores a diesel. Foto: Projeto Bailique Solar

Expansão do acesso à energia solar depende de políticas públicas

Na análise tanto dos líderes comunitários como dos representantes da ONG, o projeto vem melhorando a qualidade de vida da comunidade, mas ainda está longe de conseguir atender a todas as necessidades. Para Lígia Kawata, “é preciso ser criado um modelo de negócio que as pessoas paguem por isso, mas esse modelo não vai se formar sozinho, precisa que alguém impulsione isso. Precisa existir um projeto ou facilitação ao crédito para a pessoa adquirir um kit”. 

Alguns moradores se especializaram na manutenção dos sistemas solares. A produção de gelo é feita durante todo o verão amazônico. Foto: Projeto Bailique Solar

Além da mobilização social em prol de projetos, como o que acontece no Bailique, é importante que a comunidade faça o requerimento para solicitar o fornecimento para a concessionária. Muitas vezes, elas estão previstas em áreas do plano de universalização e é importante pressionar. 

“O problema é que às vezes, quando não é a concessionária que instala, não tem ninguém que fica responsável por operar e manter esse sistema, né? Principalmente quando falha, o sistema acaba ficando parado, precisa de uma política pública para fazer a revitalização desse sistema, então o ideal realmente é que a concessionária preste esse serviço, que é obrigação dela.”, analisa Brito.

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