“Será que a energia vai durar até o final da aula?”. Era o que o Umbesara (que siginica professor, na língua Baré) Kurasi Ira pensava toda vez que começava uma aula na Escola Indígena Municipal Arú Waimi, na comunidade indígena Terra Preta, região metropolitana de Manaus, capital do Amazonas, no Brasil. Agora, tudo é diferente: um sistema fotovoltaico instalado na escola resolveu o problema da constante falta de energia.
O projeto leva o nome de Kurasi Turi, escolhido pelos moradores. A expressão significa “Energia do Sol” na língua Nheengatu, da etnia Baré. A iniciativa transformou o dia a dia dos 46 alunos da escola.
O sistema é híbrido, ou seja, possui baterias para armazenar a energia, mas também é conectado à rede de distribuição da concessionária (Amazonas Energia). Ele é composto por seis baterias, 32 módulos fotovoltaicos e um inversor, e gera uma potência de 12kW. As baterias servem para armazenar a energia que é gerada com a luz solar durante o dia. É previsto que o sistema economize mil reais brasileiros (cerca de US$ 200) por mês na conta de luz da escola, que é paga pela Prefeitura local.
O projeto é resultado de uma ação conjunta entre diversas instituições: iniciativa da ONG Revolusolar em parceria com a Associação Comunitária Indígena de Terra Preta (ACINCTP), que juntas construíram os projetos de maneira adaptada para a comunidade, além do apoio da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), e o Instituto Federal do Amazonas (IFAM). O projeto contou com doação de baterias de lítio da Universidade Católica de Brasília, e recebeu apoio financeiro da Honnold Foundation (EUA), da empresa americana Nextracker, e do Instituto Clima e Sociedade.
“Como a maioria das comunidades na Amazônia, a Terra Preta, por estar distante do centro, sofre muita instabilidade e interrupção de fornecimento. Na pesquisa que fizemos com os moradores, a maioria relatou que não há energia por mais de duas vezes na semana”, conta Eduardo Avila, diretor da Revolusolar, organização que atua em soluções em energia solar em comunidades de baixa renda.
Solução para a constante queda de energia
O sistema começou a funcionar em junho deste ano, e nestes primeiros quatro meses a realidade na escola já mudou, com o fornecimento ininterrupto de energia elétrica. Por estar na ponte da rede de transmissão, distante dos centros urbanos, o fornecimento na comunidade indígena Terra Preta sofre muita instabilidade. Com a longa distância da rede, interferências na linha de transmissão de energia como ventos, chuvas e quedas de galhos impactam a qualidade da energia que chega ao território.
Até a instalação do sistema fotovoltaico, era comum que as aulas do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), que acontecem à noite, fossem canceladas devido à falta de energia elétrica. Em média, a comunidade ficava cerca de 8 dias sem luz, mensalmente.
Durante o dia, os alunos não aguentavam o calor. ”Muitas vezes o jeito era sair das salas para terem aula no salão aberto”, relata Rhaelma Fernandes Bruno, mãe de Ticiana Fernandes da Silva, 10, uma das alunas. Na região metropolitana de Manaus é quente durante todo o ano, com temperaturas chegando aos 36 graus Celsius. Sem energia, também não era possível aliviar o calor com ventiladores ou se refrescar com a água gelada do bebedouro.
O estudo também ficava comprometido: sem energia os computadores do laboratório de informática não funcionavam. A grande maioria das crianças não têm dispositivos em casa, e usar os computadores e tablets da escola é a única opção. “Não tinha como eles estudarem nos computadores sem luz ou ter alguma programação à tarde, fazer um curso online, por exemplo”, relata Rhaelma, que destaca o quanto o acesso à internet contribui na rotina de aprendizado dos estudantes.
Com a energia solar, esses problemas nunca mais se repetiram. “Agora temos energia 24h por dia”, conta Clodoaldo Silva Aleixo, cacique da Terra Preta.
Kurasi Ira comemora a iniciativa e está muito mais tranquilo para dar as aulas. “Agora eu só me preocupo com o meu trabalho, e não com a luz que pode cair a qualquer momento. Pode chover que a luz não vai embora”, relata. Mesmo sem ar-condicionado, a escola pode sempre ligar os ventiladores para amenizar o calor. “Quando começa a esquentar, o aluno fica inquieto, quer sair, beber água, atrapalha o ensino”, diz o professor.
Menos consumo de óleo diesel
Antes da instalação do sistema fotovoltaico, em alguns momentos de interrupção do fornecimento de energia, a escola utilizava um gerador à diesel, uma energia cara e poluente.
O gerador ainda é usado pela comunidade, composta por 149 pessoas de 40 famílias. O equipamento fica ligado cerca de 11 horas por dia; e é custeado pela Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Manaus.
Antes, o consumo era de cerca de 900 litros de combustível por mês. Como o gerador não precisa mais ser ligado para a escola, esse consumo diminuiu para 720 litros, diz Aleixo.
Capacitação
O projeto também contou com um curso de formação profissional. Ao todo, 20 membros da comunidade se formaram como eletricistas de sistemas fotovoltaicos e receberam o diploma do IFAM, que ministrou as aulas.
Avila destaca que isso pode contribuir para gerar empregos formais, e também possibilita que os próprios moradores realizem a operação e manutenção do sistema, sem a necessidade de contratação de profissionais de fora. A Revolusolar também encaminhou os currículos dos formados para empresas de energia solar da região. Também foi produzida uma cartilha sobre a concepção indígena da energia solar.
Ludimar Kokama já ouviu muitas críticas de outras instalações de sistemas de energia solar em comunidades indígenas que não contaram com formações como essa. “Não pode só instalar e ir embora. É um sistema que precisa de cuidados. As famílias que vivem em situação vulnerável não conseguem contratar alguém para resolver problemas que surgem”, opina.
Kokama observa que a energia solar condiz com o que os povos indígenas falam sobre a importância da sustentabilidade ambiental e da socioecologia. “Para gerar energia solar, não precisa derrubar uma folha, tudo oferecido é pela natureza”, reflete.
Problema na comunidade permanece
A questão da escola foi resolvida com o projeto, mas a realidade das casas permanece como antes. O cacique explica que a energia do programa federal é precária e está suscetível a quedas.
“A energia do Luz Para Todos não é suficiente. Há pessoas que trabalham com comida, por exemplo, que não podem ficar sem luz para não prejudicar as vendas”, relata o cacique.
Além disso, Rhaelma relata problemas de potência dos sistema elétrico e do gerador. “Às vezes não conseguimos ligar uma geladeira. Alguns eletrodomésticos não funcionam.”, diz. Ludimar Kokama, coordenador tesoureiro da Copime, conta que essa insuficiência da energia ocasionou a queima de eletrodomésticos, que são caros, e precisaram ser reparados ou trocados.
Na escola, o novo sistema também resolve este problema. “Os equipamentos podem ser ligados nessa reserva de energia das baterias, fazendo com que continuem a operar mesmo sem a rede, reduzindo o risco de queima dos equipamentos pelas quedas de luz”, diz Avila.
A Revolusolar tem a intenção de realizar uma segunda etapa para contemplar as residências. No entanto, Avila destaca que a ONG, neste momento, prefere focar na instalação em escolas e instituições de outras comunidades “por entender isso maximiza o impacto social”, pontua.
Limitações da solução
O principal desafio desse tipo de projeto é financeiro, pontua a Revolusolar. Uma iniciativa como essa custa, em média, 100 mil reais brasileiros (cerca de 20 mil dólares).
Na Amazônia, um outro desafio é a logística. Para essa comunidade específica, que está a quatro horas de barco de Manaus, esse não foi um problema tão sério, mas há comunidades que ficam até 70 horas de barco da capital. “Levar todos os equipamentos para a instalação e, depois, para manutenção, é difícil”, afirma.