“Gigante pela própria natureza”, Brasil precisa frear desmatamento para cumprir compromisso climático

Em sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês), o Brasil se compromete a reduzir de 59% a 67% das suas emissões de gases do efeito estufa, na comparação com 2005. Resultado só será possível com redução drástica do desmatamento, já que a mudança no uso da terra é o setor que mais emite no país. Mas NDC deixa dúvidas do tamanho real do compromisso com essa antiga promessa.

Em sua campanha eleitoral, o presidente Lula prometeu o que parecia impossível: zerar o desmatamento em todos os biomas brasileiros. Mais recentemente, com a entrega, às Organizações das Nações Unidas (ONU), do compromisso climático brasileiro (a NDC – Contribuição Nacionalmente Determinada, na sigla em inglês), o governo brasileiro não sustenta essa ambição, mas se compromete com o que parece possível: zerar o desmatamento legal e reduzir o desmatamento ilegal. 

Área de cerrado desmatada para plantio no município de Alto Paraíso, Goiás. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

A NDC brasileira “descumpre de saída a promessa do presidente: assume que a promessa de zerar todo o desmatamento do Brasil até 2030 não vai ser cumprida”, avalia Claudio Angelo, coordenador de Política Internacional do Observatório do Clima. Mas, pondera Angelo, “acho que neste momento, era o que dava para prometer”. 

Mesmo com a degradação das áreas naturais tendo avançado para 33% do território em 2023, de acordo com o MapBiomas, o Brasil ainda é um “gigante”, como cantado em seu hino nacional, em biodiversidade e áreas naturais preservadas. Porém, a mudança do uso do solo, que implica na perda da cobertura original, é o setor com mais emissões no país, totalizando 44% dos gases poluentes que o Brasil lança na atmosfera. Em números absolutos, o país é o sexto maior emissor do planeta (vale ressaltar que os países da União Europeia são contados juntos). 

Emissões por setor. Dados: SEEG Brasil. 

Apesar de na NDC ficar claro que o governo não está contando com o fim de desmatamento ilegal até 2030, o compromisso entrega um avanço e “ainda deixa uma janela aberta para 2035”, afirma Angelo. Com os planos setoriais, que serão aprovados ao longo de 2025 e vão compor o Plano Clima brasileiro, será definido como cada setor da economia vai cortar emissões de maneira a cumprir a NDC. Em outras palavras, o Plano Clima aterrissa a NDC para a prática. 

As NDC são os documentos que cada país apresenta, no marco do Acordo de Paris, se comprometendo a reduzir suas emissões de gases do efeito estufa, em um esforço global que visa limitar o aquecimento do planeta em no máximo 2°C, e preferencialmente em 1,5°C. 

O Brasil foi o segundo país a entregar o documento, antes da data limite anunciada pela ONU, que é dia 10 de fevereiro deste ano. A entrega brasileira aconteceu ainda durante a COP29, em Baku, no Azerbaijão, e fez parte do esforço do país em demonstrar sua liderança climática, já que irá sediar a próxima COP. 

Entrega da NDC do Brasil, durante a COP29, no Azerbaijão. Foto: Divulgação UNFCCC

Pela primeira vez o Brasil definiu uma meta de redução “em banda”, ou seja, apresentou uma ambição mínima e uma ambição máxima, que, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente, é onde a política climática vai mirar. Se conseguir cortar o máximo previsto, o Brasil chegaria a 2035 emitindo 850 milhões de toneladas de gás carbônico equivalente. Se o corte feito for o mínimo anunciado na NDC, o país chegaria em 2035 emitindo 1,05 bilhão de toneladas. Ou seja, a NDC se compromete com uma redução entre um piso de 59% e um teto de 67%, em comparação com as emissões de 2005.

Nesta conta, a preservação de áreas naturais importa muito. “A restauração de vegetação nativa é vetor fundamental desta estratégia”, diz trecho do documento. 

“O compromisso do governo brasileiro é de desmatamento zero”, afirma a ministra do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, Marina Silva. Em entrevista coletiva durante a COP29, Silva destacou o peso do fim do desmatamento na NDC brasileira. “Em tempos anteriores nós fomos capazes de fazer uma queda significativa das nossas emissões, quando a gente pega o período de 2005, que evitou lançar na atmosfera 5 bilhões de toneladas de CO2, a maior contribuição já dada por um país desde o protocolo de Kyoto. É lastreado nessa experiência, que começa a ser reeditada agora, com a redução do desmatamento, (…) que nós faremos uma combinação para alcançar esse resultado até 2035”.

A redução do desmatamento na NDC

Em sua NDC o Brasil afirma que “implementará esforços coordenados e contínuos para suprimir o desmatamento ilegal e incentivará, cada vez mais, a preservação da vegetação nativa”, visando “o o alcance da meta de emissões líquidas zero em 2050”. 

O documento afirma que isso exigirá fortalecimento das medidas de comando e controle. A NDC cita algumas das ações já aplicadas neste sentido, que levaram o país a alcançar a maior taxa de redução do desmatamento na Amazônia desde 2015. Entre elas destaca-se a retomada e aumento das ações de fiscalização do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), com a instituição dos embargos remotos – que é o uso de tecnologias de imagens de alta resolução para identificar supressão ilegal da vegetação nativa,  permitindo a aplicação de medida administrativa cautelar pelos órgão ambientais responsáveis, à distância. A medida transforma o cenário de fiscalização, já que as equipes são limitadas e os territórios a serem fiscalizados são grandes em extensão e de difícil acesso. Para se ter ideia do problema, antes da medida, entre 2019 e 2021, a quase totalidade (98%) dos mais de 200 mil alertas de desmatamento validados pelo MapBiomas tinham indícios de ilegalidade. Mas só 7% deles foram objeto de alguma ação. 

Embargos remotos ampliam a capacidade de fiscalização do IBAMA. Foto: Marcelo Camargo - Agência Brasil

“Quando você controla o desmatamento ilegal na Amazônia, é quase como se você estivesse mexendo nos fatores que possibilitam o desmatamento legal também. Ao desarticular essa economia-crime na Amazônia, você consegue efetivamente reduzir muito ou praticamente zerar o desmatamento”, pondera Angelo sobre a importância dos resultados alcançados. 

O governo também cita na NDC a aprovação, em 2023, na câmara técnica de destinação de terras públicas federais rurais, de mais 9,5 milhões de hectares para estudos de novas unidades de conservação ou áreas de concessões florestais, a vedação de acesso a crédito rural em área desmatada ilegalmente, e a criação do programa União com Municípios, que prevê repasses federais de até R$ 785 milhões (cerca de US$ 133 milhões) para ações ambientais, caso haja redução do desmatamento. 

Mais financiamento é parte fundamental da estratégia brasileira. O documento afirma que, além das ações de comando e controle, será necessário “o estabelecimento de incentivos positivos para tornar economicamente vantajosa a manutenção e restauração da vegetação nativa em propriedades rurais privadas”.

Isso porque o código florestal estabelece uma área de conservação obrigatória de 80% na Amazônia, mas de apenas 35% no Cerrado, que atualmente é o bioma mais desmatado no Brasil, onde aconteceu mais da metade da supressão de vegetação nativa em 2023.  Assim, mesmo que o país consiga acabar com o desmatamento ilegal, milhares de hectares ainda poderiam ser desmatados, dentro da lei. 

Marta Salomon, especialista sênior do Instituto Talanoa, observa que o documento cita como parte do esforço de eliminação do desmatamento incentivos econômicos, que são necessários, explica ela, “para fazer com que os produtores rurais que têm autorização legal para desmatar, pelo Código Florestal, (principalmente no Cerrado, onde o desmatamento está correndo solto – ainda que já tenha diminuído), preservem a vegetação. E para isso a gente vai ter que contar com o pagamento de serviços ambientais, que ainda não foi regulamentada a lei”, pontua. 

Alterar o Código Florestal, neste momento, não é uma opção: embora tenha falhas, a lei é robusta e ajuda a proteger os biomas brasileiros. “Nenhum governo de consciência jamais faria isso no Congresso que a gente tem”, adverte Angelo. 

Na NDC o governo destacou as ações voltadas para o Cerrado, que resultaram em uma redução de 25.7% nas taxas de desmatamento em 2024, em comparação a 2023. Foram citados o lançamento do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado), o aumento de embargos remotos pelo IBAMA, a intensificação na fiscalização, vedação de acesso a crédito rural em área desmatada ilegalmente, e o envolvimento de lideranças do agronegócio sobre estratégia de combate ao desmatamento no Cerrado, embora não haja detalhes de como isso foi feito.

O governo ainda não anunciou como (ou com quanto) pretende convencer os proprietários de terra a abrirem mão do que podem desmatar por “direito”. O cenário de financiamento ficou ainda mais complicado depois do fracasso das negociações da COP29, no Azerbaijão, quando a meta de financiamento acordada ficou em US$ 300 bilhões (cerca de R$ 1,76 trilhão) até 2035, um trilhão de dólares (ou R$ 5,88 trilhões) a menos do que a demanda conjunta dos países em desenvolvimento.

Manifestantes pedem mais financiamento em ato realizado durante a COP29, no Azerbaijão. Foto: Marcela Maria Martins

Em entrevista à CNN, o embaixador André Corrêa do Lago, nomeado presidente da COP30, afirmou que o Brasil “terá a missão de costurar uma estratégia de financiamento até a conferência em Belém”, mas reconheceu que “não será possível saltar de US$ 300 bilhões para US$ 1,3 trilhão em um ano”. 

O país também segue apostando no Fundo “Florestas tropicais para sempre”, o TFF, na sigla em inglês, proposto pelo Brasil na COP28, em Dubai, que pretende arrecadar $250 bilhões de dólares (cerca de R$ 1,47 trilhão). A rentabilidade líquida do fundo seria a fonte de pagamento para os países tropicais, que poderiam acessá-lo caso mantenham o desmatamento abaixo da taxa que for definida. Silva declarou que agora o objetivo é “criar um processo colaborativo entre os países» para a construção do fundo. A retomada do Fundo Amazônia também é citada na NDC. 

O Brasil também prometeu “celeridade e segurança jurídica em procedimentos administrativos e processos judiciais em matéria ambiental e climática”, regularização fundiária e incentivo à conversão de novas áreas (para cultivo agrícola) “prioritariamente a partir de pastagens degradadas”. Uma pesquisa conduzida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), mostrou que existem mais de 28 milhões de hectares de pastagens com níveis de degradação intermediário e severo que apresentam alto potencial para culturas agrícolas. Se ocupadas, isso aumentaria em 35% a área total plantada com grãos no país em relação à safra 2022/23, sem que fosse necessário desmatar áreas preservadas. 

“Muita restauração florestal”

“Toda a modelagem do Plano Clima prevê que a gente vai ter que ter muita restauração florestal”, pondera Salomon. Na NDC, a meta até 2030, é restaurar 12 milhões de hectares. “É a mesma meta da nossa primeira NDC. A gente não cumpriu e está restabelecendo a mesma meta”, explica.

O Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg) passou por uma revisão, foi apresentado durante a COP16, na Colômbia, e é citado na NDC. A primeira versão do plano foi lançada em 2017, mas nos anos seguintes, sob o governo de Jair Bolsonaro, o país passou por um enfraquecimento das políticas ambientais, e o Planaveg foi suprimido da versão da NDC apresentada em 2021

A recuperação é parte importante do esforço principalmente por causa da fragmentação das áreas conservadas, o que gera mais suscetibilidade e perdas na fauna e na flora. “Os dados científicos disponíveis e as projeções indicam que o país pode resgatar passivos ambientais sem prejudicar a produção e a oferta de alimentos, fibras e energia”, afirma o documento. 

O Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, adotado na COP15 de biodiversidade, estabelece, entre suas metas, 30% de restauração de ecossistemas degradados. 

A NDC cita, ainda, o chamado “Arco da Restauração na Amazônia”, uma iniciativa anunciada na COP28 que tem o objetivo de unir esforços para restaurar 6 milhões de hectares de floresta na Amazônia, até 2030, e 24 milhões de hectares até 2050, nos cinquenta municípios, em sete estados da Amazônia, que mais sofreram degradação. Investimentos de R$ 200 bilhões (cerca de US$ 34,01 bilhões) são estimados.

Meta do Brasil é restaurar 12 milhões de hectares até 2030. Foto: Marcela Maria Martins

Agro pode menos “ambições” nas metas de desmatamento

É o Plano Clima que vai dizer se o Brasil de fato buscará a redução das emissões, como previsto na NDC. O plano setorial do agronegócio, setor que mais desmata, é fundamental para ter clareza sobre isso. “A gente espera que os planos setoriais mirem no 850, se isso acontecer, especialmente para o setor de agropecuária, a gente vai ter uma indicação de que o governo está falando sério”, afirma Angelo.

Mas o caminho vai ser “um parto difícil”, nas palavras de Salomon. Ainda antes da divulgação da NDC, a Folha divulgou que teve acesso a uma carta, assinada por 13 grandes empresários do agronegócio e endereçada à chefia da Secretaria Nacional de Mudanças do Clima do MMA, na qual questionavam o compromisso de zerar o desmatamento até 2030. O texto dizia que é preciso «cautela na ampliação de ambições» e que “ao invés de ampliarmos os compromissos do setor agro em termos de redução de emissão, devemos avançar em estratégias e propostas para fortalecimento da agenda de adaptação”. O agro respondeu por 28% das emissões brutas do Brasil, isso sem considerar as emissões ligadas ao desmatamento, contabilizadas na categoria mudança no uso da terra. Só de fermentação entérica (o arroto do boi), foram 405 milhões de toneladas emitidas. 

As decisões do Plano Clima sobre desmatamento e agropecuária vão impactar diretamente em quanto os demais setores vão ter que reduzir. “Quem está responsável pela modelagem, que é a COPPE, da UFRJ, tem falado com insistência nas reuniões de grupos, de debates dessa modelagem: quanto menor for o desmatamento, menor vai ser a carga de redução para os outros setores. Mas se você tiver algum desmatamento remanescente, você vai ter que apertar o cinto dos outros setores”. 

Todos os setores apresentaram alta de emissões no último ano, o que sinaliza a dificuldade das negociações. Se for sustentada a ambição de zerar o desmatamento ilegal e reduzir o legal, eles ganham fôlego e mais tempo para transição. “Se eu fosse a indústria, se eu fosse o setor de transporte, estaria fazendo uma campanha monstruosa pelo desmatamento zero”, completa Angelo.  

Floresta em pé

“A forma como o desmatamento é tratado para atingir [até] 850 MtCO2e precisará ser muito mais rigorosa do que para [atingir até] 1,05 GtCO2e (o último (…) acomoda mais de 10.000 km2 de desmatamento por ano em todos os biomas, enquanto o primeiro acomodaria mais de 5.000 km2)”, aponta relatório do Observatório do Clima. 

Os especialistas ouvidos concordam que a NDC em banda já é resultado de uma disputa interna (especialmente entre os Ministérios do Meio Ambiente, o da Casa Civil e o da Agricultura e Pecuária) sobre quanto de sua vegetação nativa o governo quer deixar em pé. 

Com eventos climáticos extremos mais intensos por causa do aumento da temperatura global, outros problemas ambientais causados pela perda de vegetação nativa também se agravam. “Se a gente continuar desmatando, a gente vai ter vários tipping points (pontos de não retorno). O ecossistema é resiliente até um determinado ponto, passou de um determinado ponto, ele colapsa. E aí, você afeta o regime de chuva, está tudo conectado. Se a gente continuar nesse ritmo de desmatamento, o problema não é só por contabilidade de emissão”, afirma Salomon.

Barco encalha em lago seco, em Manaus. Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil

A especialista destaca que além das ações de comando e controle, o que vai determinar o sucesso do Plano Clima são medidas que estimulem uma economia que se beneficia diretamente da manutenção das florestas.

“Porque aí você segura o desmatamento, não pela punição. E isso ainda não apareceu. A gente está cobrando, cadê o plano nacional de bioeconomia? Era para ter sido divulgado em 2004, ainda não aconteceu. Cadê a regulamentação do pagamento de serviços ambientais? Ainda não aconteceu”, pondera. 

Na expectativa para a COP30, a primeira na Amazônia, o Brasil precisa concluir seus planos setoriais e apresentar sua prestação de contas: em quanto de preservação vai chegar, se vai de fato cumprir sua NDC e renovar seu compromisso contra o aquecimento do planeta. Resta saber de que tamanho o gigante chegará diante desse nada pequeno desafio. 

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