Herança japonesa na Amazônia: as agroflorestas que impulsionam a bioeconomia e mantêm o bioma em pé

No município de Tomé-Açu, uma comunidade de descendentes de japoneses colhe os bons frutos do modelo agroflorestal adotado há décadas. Frutos nativos da floresta e outros cultivos associados geram renda para as famílias cooperadas, que juntas exportam mais de 100 toneladas de produtos todos os meses.

No coração da Amazônia paraense, em uma paisagem onde o verde nunca se repete e a terra respira sob camadas de folhas frescas, o município de Tomé-Açu, distante cerca de 187 km de Belém, no Pará, abriga um dos modelos de produção mais singulares do país que, por décadas, era pouco conhecido fora dali. 

Entre fileiras de cacau sombreado por açaizeiros, palmeiras altas, pimenteiras antigas e cupuaçuzeiros que brotam de troncos grossos, as famílias descendentes de imigrantes japoneses construíram uma forma de agricultura que parece descrever a própria floresta: diversa, resistente e profundamente interligada. 

É dessa combinação de tradição, ciência e adaptação que o sistema agroflorestal foi implementado na região e transformou o município em referência internacional de bioeconomia, por ser um exemplo vivo de que é possível gerar renda contínua, manter comunidades inteiras no campo e preservar a floresta, tudo ao mesmo tempo.

O espaço tem cerca de 7 mil hectares de sistemas agroflorestais e a produção dali garante renda mensal a pequenos produtores, que se organizam em uma cooperativa que impacta diretamente 10 mil pessoas. 

As famílias cooperadas produzem cerca de 100 toneladas mensais de açaí, além de cacau, pimenta-do-reino e mais de 15 variedades de frutas, grande parte destinada à exportação para países como Japão e Estados Unidos.

A pimenta-do-reino, vista no passado como “diamante negro”, continua sendo um produto estratégico: quase toda a produção da Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (CAMTA) é exportada, enquanto 80% do cacau beneficiado segue o mesmo caminho. 

O açaí é o carro-chefe em volume, abastecendo tanto o mercado interno quanto uma indústria de polpas e óleos em rápida expansão. É um retrato da bioeconomia em prática: produção diversificada, renda constante, floresta em pé e exportação baseada na biodiversidade.

Uma floresta que se cultiva e se reinventa

A força desse modelo, o Sistema Agroflorestal de Tomé-Açu (SAFTA), nasceu de uma crise. Como explica Alberto Oppata, presidente da CAMTA, a transição para o consórcio foi uma necessidade após a devastação dos pimentais na década de 1970.

Cultivo da pimenta-do-reino pelos primeiros imigrantes japoneses na Amazônia. Foto: Autoria desconhecida

“Antes era monocultura, com desmatamento e queimadas. Com a doença da pimenta, tivemos de mudar completamente. Entrou o consórcio, depois chamado de agrofloresta, que protege o solo e cria um microclima favorável para insetos, pássaros e pequenos animais. É bom para a renda, para as famílias e para o meio ambiente.”

Esse sistema permite combinar plantas de curto, médio e longo prazo no mesmo espaço. Oppata descreve a lógica: arroz, feijão e milho garantem receita em dois meses; o maracujá entra em oito; a pimenta produz do terceiro ao quinto ano; e ficam, ao final, as espécies perenes, que são cacau, açaí e madeiras nobres.

O objetivo é simples: não deixar o produtor sem renda mensal e, ao mesmo tempo, construir uma floresta produtiva completa.

“O produtor tem despesas todo mês. O SAF é pensado para que ele tenha colheita todos os meses também”, resume Oppata.

Memória, saber e o renascimento da terra

No espaço da produtora rural Cristina Maeda, o sistema agroflorestal é também uma forma de honrar a memória dos pais, imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil em busca de recomeço.

Ela descreve os cultivos do sistema de agrofloresta que mantém: pimenta, cacau, cupuaçu e açaí crescendo juntos, onde cada espécie ocupa um nicho do solo.

“É uma simbiose. O cacau pega nutrientes mais profundos, a pimenta fica na camada superficial, o açaí vai mais fundo ainda. As folhas que caem viram adubo. A terra nunca fica ‘careca’. Ela respira”, descreveu. Cristina também reforça o pilar econômico:

“No início tenho feijão, arroz, mandioca. Depois vem a pimenta, depois o cacau, depois o açaí. Não tem aquele vazio da entressafra. A gente vive com segurança.”

Tomé-Açu é hoje um município de 80 mil habitantes que cresceu ancorado na agricultura. Segundo Oppata, são mais de 6 mil agricultores familiares na região. Ali, não há desemprego e falta mão de obra.

A força econômica da cooperativa, somada à produção de palma e outras cadeias locais, sustenta comércio, bancos e serviços. A bioeconomia é o motor da economia regional.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Pará é o principal produtor de cacau do País, com uma produção de 154 mil toneladas de amêndoas por ano. A Região Norte é responsável por 57% do cacau nacional, sendo que grande parte é produzida no Pará – em torno de 53%.

Os desafios que persistem

Mesmo sendo uma referência internacional, Tomé-Açu enfrenta entraves que limitam a expansão do modelo.

Segundo o presidente da associação, o financiamento oferecido pelo governo federal não é adaptado à realidade local e tem prazos incompatíveis com sistemas de longo ciclo como o cacau. 

O custo energético para a irrigação é alto, tornando necessária a transição para energia solar, um processo que vem sendo realizado aos poucos e com investimentos dos próprios produtores. Além disso, a etapa para obter outorga de água é considerada lenta e complexa. 

Opatta destaca a falta de políticas de pagamento por serviços ambientais (PSA) para recompensar produtores que conservam floresta, o que seria um incentivo a mais. 

“Falta uma janela real para pagamento por serviços ambientais. Nosso produto não vem de desmatamento, isso tem que ser valorizado”, afirma.

Como a renovação dos SAFs é feita sem queima, isso exige máquinas caras para triturar áreas antigas (de 25 anos ou mais). “A renovação sem queima exige equipamentos muito caros. E o crédito ainda não chega no formato que precisamos”, reclama. 

Apesar dos desafios, o presidente reconhece que, cada vez mais, o modelo se prova como uma alternativa para o futuro. “Esse é o caminho. A diversidade garante renda, mantém água nos mananciais, protege polinizadores. A humanidade precisa entender de onde vem o alimento e apoiar quem produz sem destruir.”

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) mostram que a taxa estimada de desmatamento na Amazônia em 2025 é de 5.796 km².

A pressão por áreas para pasto e soja avança e expõe a urgência de modelos produtivos sustentáveis. É justamente nesse cenário que a experiência de Tomé-Açu ganha força. 

Os SAFs não apenas evitam a derrubada da floresta como a transformam em aliada econômica. As áreas reflorestadas funcionam como “estoques vivos de carbono”, ajudando a frear as emissões e contribuindo para as metas climáticas do país.

A floresta como parceira econômica

O pesquisador da Embrapa Alfredo Homma, autor do livro “A Imigração Japonesa na Amazônia: sua contribuição ao desenvolvimento agrícola”, lembra que os japoneses trouxeram um modo de vida baseado na persistência e na observação da natureza.

“O desenvolvimento na Amazônia exige tempo, sacrifício e adaptação”, afirma. “Essas famílias mostraram que é possível prosperar sem destruir e que pequenos produtores também são capazes de inovar quando existe mercado.”

Embora os imigrantes japoneses tenham encontrado na Amazônia um clima e uma floresta completamente diferentes das paisagens de onde vieram, eles trouxeram consigo práticas que influenciaram diretamente a agricultura local. 

No Japão, a agricultura familiar se estrutura em pequenos lotes, onde a diversificação e o consórcio de culturas são regra, técnicas que ao migrarem para o Brasil adaptaram-se ao trópico úmido. 

Homma explica que essa “disciplina agrícola” ajudou a consolidar o modo de produção que hoje define Tomé-Açu, com podas constantes, aproveitamento de cada estrato do solo, uso de espécies que se complementam e uma lógica de organização cooperativada semelhante às kyōdō kumiai – cooperativas agrícolas – japonesas. 

Para o pesquisador, os SAFs são vitais para recuperar áreas degradadas e dar “sentido econômico” à restauração, um dos maiores desafios da Amazônia.

A produtora rural Cristina Maeda segue o mesmo raciocínio. “O sistema é harmônico. Em pouco espaço, você produz várias culturas. Isso podia ser feito em muitos outros lugares. Aqui a gente mostra que é possível”.

O futuro que brota do passado

Nascido da resiliência de famílias japonesas que insistiram e se adaptaram, Tomé-Açu carrega o legado de quase um século.

Os primeiros imigrantes chegaram à Amazônia em 1929, atraídos por um acordo entre o governo brasileiro e o japonês, que buscava mão de obra qualificada para impulsionar a agricultura na região. 

A vinda dos japoneses ao Brasil não foi casual. No início do século XX, o Japão enfrentava superpopulação, escassez de terras agrícolas e uma crise econômica agravada pelo pós-guerra. 

Com poucas oportunidades de trabalho e pressão sobre os pequenos agricultores, a emigração tornou-se uma política do Estado japonês. O Brasil, por sua vez, buscava mão de obra qualificada para impulsionar sua agricultura e firmou acordos de cooperação com o governo japonês. 

As famílias que desembarcaram na Amazônia não vieram apenas em busca de sobrevivência, mas de um lugar onde pudessem reconstruir a vida e exercer o conhecimento agrícola que dominavam, trazendo consigo técnicas de precisão, disciplina e diversificação que acabariam moldando a identidade agrícola de Tomé-Açu.

Hoje, essa herança se traduz em uma economia que funciona, gera renda e preserva. O município mostra, com simplicidade e força, que a Amazônia não precisa ser derrubada para produzir, precisa ser compreendida, manejada e valorizada.

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