O Brasil possui mais de 23 mil indústrias dos setores têxteis e de vestuários, e são quase 300 mil toneladas de resíduos geradas anualmente, considerando apenas o processo que ocorre na mesa de corte (antes da costura), como revela o Guia sobre Reciclagem Têxtil, produzido pelo Programa Moda.Ind-SP, um convênio entre a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT) e a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo. Os dados são do Relatório Setorial da Indústria Têxtil Brasileira.
Somado ao descarte de roupas usadas, a quantidade de resíduos têxteis ultrapassa 4 milhões de toneladas, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em estimativa feita à CNN Brasil.
Como grande parte das peças produzidas são feitas com tecidos sintéticos, como o poliéster, que têm petróleo na composição, a estimativa é que boa parte desses resíduos leve cerca de 400 anos para se decompor.
De acordo com o “Relatório de materiais”, produzido anualmente pela organização sem fins lucrativos Textile Exchange, a produção global de fibras aumentou 7%, de 116 milhões de toneladas em 2022 para 124 milhões de toneladas em 2023. Além disso, a participação de mercado de sintéticos virgens à base de combustíveis fósseis continuou a crescer em 2023, enquanto a do algodão e de fibras recicladas teve queda.
Em nota à Climate Tracker, a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) afirma que “considerando as informações de grandes empresas recicladoras têxteis no país, estimamos que em torno de 25 a 30% dos resíduos gerados, na produção de novas peças de vestuário, são reciclados”.
A Associação reconhece que o desafio é grande. A Abit declarou que no momento há na indústria “maior adesão de tecnologias de automação de corte que trouxeram mais precisão no processo, minimizando desperdícios”. Além da maior precisão no corte dos tecidos, para reduzir a quantidade de resíduos, a orientação é que as indústrias trabalhem para “maior assertividade na coleção, compra de tecidos, a fim de evitar sobras” e que invistam em um melhor design. “Produtos precisam ser projetados e desenvolvidos de modo a permitir o prolongamento da vida útil, facilitar o reparo e a reciclagem, bem como estimular o maior uso de matérias-primas recicladas”, pondera.
O problema está também no ritmo de consumo de roupas. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a média de consumo de roupas por pessoa é 60% maior que 15 anos atrás. O alto volume de consumo e, consequentemente, descarte, torna essa uma equação difícil de resolver. “É importante destacar que toda essa problemática dos resíduos começa com a superprodução do setor. Então, toda a quantidade de roupas exacerbada produzidas faz com que o problema no final da cadeia seja amplificado”, afirma Isabella Luglio, coordenadora do Índice de Transparência da Moda da Fashion Revolution Brasil.
O movimento do qual Luglio faz parte foi fundado após uma tragédia, em 24 de abril de 2013. As portas do prédio Rana Plaza foram abertas para mais um dia de trabalho em uma fábrica de tecidos, em Savar, Bangladesh, na Índia. As peças produzidas seriam enviadas às grandes marcas da indústria da moda. Mas a estrutura do local desabou e matou mais de 1.100 trabalhadores. O prédio operava de forma precária e ilegal – uma realidade comum na cadeia produtiva da moda. A tragédia sensibilizou Carry Somers e Orsola de Castro, que fundaram a Fashion Revolution, movimento hoje presente em 23 países, incluindo o Brasil, e desenvolve projetos por uma moda socioambientalmente mais justa.
Um obstáculo observado por Luglio quando o assunto é sustentabilidade é a falta de rastreabilidade. “Há falta de transparência em relação às marcas quando chega no nível do fornecimento, principalmente, quanto mais distante da operação da marca esse fornecedor está posicionado. E a questão do greenwashing, social washing, todos esses problemas, são muito centrais no setor”, enfatiza.
Para ela, “a transparência é um antídoto porque, uma vez que a marca está colocando essa informação para o seu público, no seu site, nos seus relatórios de transparência e de sustentabilidade, ela está se posicionando”. Em 2023, o Índice de Transparência da Moda analisou informações de 60 empresas que operam no Brasil com a moda, a partir de 263 indicadores.
Os resultados indicaram que 40% das marcas divulgaram quantos itens foram produzidos, 20% divulgaram a quantidade de resíduos de pré-produção gerada anualmente e 8% a quantidade de produtos desenhados para permitir esse circuito fechado [um conceito da logística reversa para reintegrar o resíduo em outras atividades/produtos dentro da própria indústria], anualmente. “O que a gente pode entender de tudo isso? Que as marcas que operam no Brasil tendem, sim, a serem mais transparentes sobre o tema de resíduos e superprodução, mas ainda falta uma grande fatia de dados e de engajamento de grandes empresas para a gente ter uma imagem mais clara do tamanho do desafio do setor”, reforça Luglio.
Os problemas socioambientais da indústria têxtil e da moda
Mundialmente, a indústria têxtil e da moda é responsável pela emissão de pelo menos 3,3 bilhões de gases de efeito estufa, por ano, como indica o PNUMA.
A Abit destaca que 69% da energia consumida pelo setor têxtil é de matriz renovável, “o que é um grande diferencial quanto às emissões de gases de efeito estufa em comparação aos demais grandes produtores têxteis mundiais, que estão em países nos quais a matriz energética é majoritariamente composta de fontes fósseis”. A Associação declarou que mantém um projeto para promover o engajamento das empresas associadas na elaboração de inventários de gases de efeito estufa.
A historiadora e influenciadora de moda, Caroline Lardoza, enfatiza que “ainda há um caminho muito extenso [para uma moda mais sustentável] porque é, realmente, você lutar contra uma indústria que preza exclusivamente pelo lucro, e se o lucro vem à frente, não olha as dinâmicas sociais por trás disso, não olha as condições de trabalho, como que é produzido, quem produz e onde, isso fica num plano de fundo que, muitas das vezes, não é cobrado, não é questionado”.
Lardoza cresceu com a costura dentro de casa. “A minha mãe e a minha avó eram costureiras, mas elas (e eu também) não enxergavam isso como uma dinâmica de trabalhar com moda”. O debate sobre moda sustentável, segundo ela, passou a ter mais espaço durante e pós-pandemia. “Quando eu comecei a estudar a história da moda, em 2017, eu não via muito dessa dinâmica acontecer, até mesmo nos espaços acadêmicos. Não tinha, por exemplo, muitas mesas nos simpósios que trabalhassem sustentabilidade, é algo que a gente vê, principalmente, pós-pandemia, que essa necessidade, essa urgência de olhar para o redor”, destaca.
Como influenciadora, Lardoza dialoga sobre as conjunturas de uma moda sustentável mais acessível para mais de 30 mil seguidores em seu perfil do Instagram. “Quando a gente fala de sustentabilidade, muitas pautas abraçam só o meio ambiente e não abraçam a questão social, a acessibilidade dessa moda sustentável dentro da dinâmica de cotidiano, isso afasta muitas pessoas por um motivo óbvio que é o dinheiro.”, destaca.
“A gente sabe que tem uma super estrutura que tem muito mais culpa do que o consumidor final”, pondera. “Tem o agronegócio, tem a própria indústria têxtil, as dinâmicas de relação de trabalho, que não são fiscalizadas, que não são valorizadas dentro dessa indústria, uma indústria muito rápida, que tudo fica obsoleto”.
Legislação incentiva economia circular, mas faltam regras específicas
Se toneladas de resíduos são gerados pela indústria que veste, decora ambientes e dita o que é moda no Brasil, como diminuir os impactos ambientais dela? A solução passa pela economia circular.
Atualmente, o Brasil possui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, onde destaca que “na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos”. Apesar disso, faltam regras específicas que tornem possível fiscalizar se as indústrias fazem o esforço necessário para reduzir a geração de resíduos.
A Lei Federal n.º 14.260/21 (conhecida como a Rouanet da Reciclagem) estabelece “incentivos fiscais e benefícios a serem adotados pela União para projetos que estimulem a cadeia produtiva da reciclagem, com vistas a fomentar o uso de matérias-primas e de insumos de materiais recicláveis e reciclados”.
Já o Projeto de Lei (PL) 270/2022, aguarda a designação de um relator da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável para ter chances de virar Lei e incentivar a logística reversa dos resíduos têxteis após haver o descarte.
A Abit cita que no setor “há iniciativas voluntárias que têm avançado no estabelecimento de pontos de coleta, estimulado reparos” e no aumento de “modelos de negócio de revenda”.
Os nós que a própria indústria tenta desfazer
De acordo com a Abit, cada vez mais o varejo, pelo interesse dos consumidores, investidores e pelos compromissos públicos com a agenda, “tem aumentado a demanda por insumos mais sustentáveis como algodão orgânico, viscose certificada, poliamida biodegradável, poliéster reciclado, entre outros”.
O Guia de Reciclagem Têxtil, com dados de janeiro de 2024, indica que 14 indústrias no país atuam com a transformação de resíduos têxteis. No interior do estado de São Paulo está uma delas.
Mensalmente, 250 toneladas de resíduos têxteis deixam de ter como destino os aterros sanitários ou lixões irregulares e são transformados em fibras têxteis recicladas pela Renovar Têxtil. A indústria é responsável por fabricar essas fibras e atender a demanda de desfibrados e enchimentos úteis aos setores automotivos, de decoração, linha Pet e artesãos. “Este processo não apenas reduz a quantidade de resíduos, mas também contribui significativamente para o desenvolvimento de um setor que ainda é desconhecido para muitos”, indica Jessica Hellen, coordenadora de processos da Renovar Têxtil.
“A utilização de fibras recicladas contribui para a diminuição de resíduos têxteis que poderiam acabar em aterros, permitindo que esses materiais sejam reaproveitados em outros produtos. A crescente conscientização sobre essa redução de impacto é fundamental tanto para os consumidores quanto para as empresas”, destaca Hellen.
“Recebemos os resíduos têxteis pré-consumo provenientes da confecção. Esses resíduos já chegam separados e classificados por tipo e cor, o que facilita a destinação para as categorias específicas dos produtos finais que fabricamos”, finaliza.