No fim de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva, após uma campanha de sucesso, subiu a rampa do Palácio dos Três Poderes como presidente do Brasil pela terceira vez. O presidente se valeu de uma ampla aliança política no esforço de barrar a vitória da extrema-direita, com uma possível reeleição de Jair Bolsonaro. No exterior, era recebido como rockstar na 27ª Conferência do Clima em Sharm El-Sheikh, Egito, sendo seu discurso de proteção à Amazônia e ao meio ambiente destaque na mídia internacional.
A perspectiva do retorno de Marina Silva (ativista histórica pelo meio ambiente junto ao seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988) ao Ministério do Meio Ambiente dava peso e credibilidade às promessas de Lula, e, concretizada a nomeação, tem servido de vitrine para o atual governo em discussões ambientais e climáticas globais.
De volta à casa, no entanto, o discurso ambiental do chefe do Executivo brasileiro tem pontos contraditórios: ao mesmo tempo em que defende ações contra a crise climática, também apoia a extração de mais petróleo. Segundo analistas, esta posição dúbia mina a credibilidade e liderança climática do Brasil no cenário global.

O problema, segundo a urbanista e advogada Suely Araújo, é que este discurso não se resume apenas ao chefe do Executivo brasileiro: se articula e permeia outras instâncias importantes no coração do poder em Brasília. Para a especialista, existe um discurso que apoia a transição energética, mas não deixa claro o que o processo significa. “E na prática, no planejamento governamental, as fontes fósseis estão muito fortes — seja o petróleo, seja o gás natural… nem o carvão é rejeitado de forma clara”, diz Araújo, que entre 2016 e 2018 foi presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e hoje é coordenadora de Políticas Públicas no Observatório do Clima, uma coalizão de organizações da sociedade civil brasileira focada no debate das mudanças climáticas.
O problema, segundo ela, é que o discurso sobre transição energética é genérico. “Quando se entra nos detalhes [do planejamento], eles não se comprometem realmente com a descarbonização efetiva,” ressalta. Isso faz com que as agendas de clima e energia estejam em constante contradição. Existem iniciativas de fomento a energias renováveis, mas, segundo Araújo, “elas não têm o peso que deveriam ter — e não há um cronograma claro em termos de descarbonização.”
Os números do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) corroboram o que Araújo diz. Criado em 2007, durante o segundo governo Lula, o PAC prevê investimentos das esferas pública e privada para impulsionar áreas como infraestrutura e educação para fomentar o desenvolvimento econômico e social do país. Relançado em 2023, o novo PAC prevê um investimento total de R$1,8 trilhão (cerca de USD 305 bilhões) de investimentos entre 2023 e depois de 2026.
A transição (e segurança) energética é um dos nove pilares do programa e tem um investimento total previsto de R$666,3 bilhões (USD 113 bilhões). Quase dois terços desse montante (R$430,5 bilhões, cerca de USD 73 bilhões) vai para o setor de óleo e gás. E do dinheiro previsto para óleo e gás, quase tudo (R$395,7 bilhões ou USD 67 bilhões) é investimento estatal e vai para desenvolvimento e produção. O PAC prevê R$5 bilhões (cerca de USD 845 milhões) para a descarbonização da Petrobras, também em investimento estatal.
Já o investimento em geração de energia, que inclui renováveis como eólica e solar, tem a previsão de receber menos de um quarto do valor dedicado a óleo e gás — R$97,9 bilhões (USD 16,5 bilhões). Quase a totalidade do investimento, além disso, deve vir de fontes privadas. A previsão de investimento estatal em geração de energia no novo PAC se concentra na térmica nuclear, com R$1,9 bilhão (USD 322 milhões) previsto para até depois de 2026.
No fim de janeiro, o presidente brasileiro sancionou o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten), que prevê apoio a projetos que visem ampliar o uso de fontes renováveis na matriz energética brasileira. Em termos de financiamento, a lei prevê benefícios tributários para proponentes que tenham seus projetos de desenvolvimento sustentável aprovados pelo governo — mas ainda não se trata de investimento direto do setor público em energia limpa.

Discurso atestado em dados
Durante o segundo semestre de 2024, a Climate Tracker analisou quase 200 textos publicados midiáticos entre janeiro de 2023 e maio de 2024. O material abrangeu conteúdo informativo e de opinião veiculados pela grande imprensa e um veículo especializado no Brasil. Enquanto a maioria teve linguagem neutra quanto à transição energética, cerca de 30% do total incluiu algum tipo de desinformação — na maior parte dos casos, a defesa da continuidade da exploração de petróleo e gás como essenciais para a economia brasileira e como motores para a transição energética.
Uma fatia substancial de afirmações nesse sentido vieram da cúpula do poder em Brasília, como do ministro de Minas e Energia Alexandre Silveira, parlamentares à direita e à esquerda no espectro político e dirigentes da Petrobras como a atual presidente Magda Chambriard.
Uma matéria de fevereiro de 2024, por exemplo, relata que o ministro Silveira observou, no Fórum Econômico Mundial em Davos, que o petróleo “ainda vai ser uma fonte energética importante entre 20 e 30 anos” e que “não há ninguém que possa bater o martelo em quanto tempo a transição energética se dará de forma efetiva”.
Pouco tempo depois, em março daquele mesmo ano, Jean Paul Prates, então CEO da Petrobras, afirmou que a transição energética “será longa e gradual,” e que a substituição do petróleo não deve acontecer antes dos próximos 50 anos. Segundo ele, “a maior parte dos mais realistas sabe perfeitamente que em 40 anos você ainda vai estar usando petróleo” e, “em 50 anos, provavelmente, petroquímica e outras coisas ainda vão estar também dependendo de petróleo e gás”.
Uma outra fala, de abril de 2024, também exemplifica o discurso na cúpula do poder Executivo brasileiro. Em um seminário sobre transição energética, o secretário de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME), Pietro Mendes, afirmou que “precisamos reduzir a demanda e não a produção de petróleo (…) Inclusive, as emissões relativas à energia no Brasil representaram só 1% das emissões totais do mundo.”
Uma posição recorrentemente encontrada na análise foi a de que o gás natural é um combustível “essencial para a transição energética”, já que é menos poluente que o petróleo. Outro discurso bastante presente na análise foi a defesa do petróleo como ativo importante para a soberania nacional — e como financiador da transição energética.
Sobre esse aspecto, Araújo diz que existe um descompasso claro em termos de perspectiva temporal. Mesmo que as petrolíferas encontrem óleo em quantidade e condição suficiente para produção em novas fronteiras, há um longo processo entre exploração e produção efetiva. “[A produção] vai se dar daqui a quantos anos? Daqui a dez, vinte anos? Vamos esperar a produção [futura] para financiar a transição energética? O cronograma não casa”. O financiamento da transição energética, ela observa, é uma necessidade imediata que não pode ficar à espera de uma receita que nem se sabe se virá — e implica na produção e consumo de um tipo de energia capaz de contrabalançar o processo de transição energética que poderá financiar.
Este tipo de discurso, diz Araújo, coloca em questão a exploração de petróleo em uma bloco da Margem Equatorial brasileira (que abarca bacias de petróleo na costa Nordeste do Brasil) conhecida como FZA-M-59 — na bacia da foz do rio Amazonas. Desde 2023, a Petrobras vem tentando obter a licença de perfuração para explorar a região. Como falhou em cumprir exigências técnicas do Ibama (como a apresentação de um sólido plano de contenção de danos em caso de vazamento, por exemplo), a empresa não obteve a liberação até o momento.
Por se tratar de uma região ambientalmente sensível, a exploração de petróleo em águas profundas na foz do Amazonas tem sido objeto de longo debate no Brasil — colocando o Ministério do Meio Ambiente, mais especificamente o Ibama, em conflito com o Ministério de Minas e Energia e Petrobras. “Todo esse debate faz parecer que o futuro da exploração de petróleo no Brasil depende da decisão sobre esse único bloco, e essa é uma visão equivocada. O Ibama concede muito mais licenças de exploração do que nega”, diz Araújo. Segundo consta no Sistema de Licenciamento Ambiental do governo brasileiro, em 2024, a Petrobras e outras empresas petrolíferas operando no país obtiveram mais de 140 licenças ou autorizações diferentes por parte do Ibama para exercer suas atividades. A média é de 12 autorizações por mês ou três por semana.

Sob pressão
Segundo uma fonte do Ministério do Meio Ambiente que pediu anonimato, fazer frente à pressão do MME tem sido uma tarefa difícil. No caso do licenciamento do bloco FZA-M-59, “o Ministério faz mais pressão do que a própria Petrobras”, conta. A pressão, observa a fonte, envolve o emprego da Advocacia Geral da União (AGU) para desconstruir argumentos que não foram utilizados como base para a negativa da licença pelo Ibama, como a necessidade da Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS). Em um parecer em agosto de 2024 (demandado pelo ministro de Minas e Energia depois da negativa do Ibama em 2023), a AGU concluiu que a AAAS não é indispensável e não pode travar o licenciamento ambiental de projetos de exploração e produção de petróleo no Brasil. “Mas o Ibama nunca condicionou o licenciamento à realização da AAAS”, diz a fonte. O embate foi amplamente noticiado pela imprensa brasileira e, segundo a fonte, “a AGU atuou como instituição constrangedora do Ibama”.
O discurso de que o petróleo é um ativo indispensável para a economia e segurança energética do Brasil é algo que transcende governos e perpassa ampliamento o espectro político no Brasil. “Nada mais parecido com o MME do governo passado do que o ministério de agora”, observa a fonte. Entre 2019 e 2022, o Brasil esteve sob o governo de Jair Bolsonaro, expoente da direita radical no Brasil. “As posições mudaram muito pouco porque a política de Estado não mudou — ela é fortemente capturada pelos interesses da indústria fóssil”, observa.
O que o atual governo traz de novidade, observa, é “um certo resgate do protagonismo da Petrobras”, já que no governo Temer (2016-2018) houve uma diminuição da participação estatal no controle da petrolífera. A ideia de explorar novas fronteiras — como bacias na Margem Equatorial e ao sul do Brasil — se baseia na percepção de que “se não houver mais exploração, o petróleo irá declinar. Mas isso não é verdade”, diz. A fonte lembra que existem estimativas da Agência Nacional do Petróleo (ANP) de que novas descobertas provavelmente ocorrerão em bacias já exploradas. “Mas esse discurso é modulado dependendo de com quem a ANP está falando. Para investidores, ela diz que o pré-sal ainda tem bastante potencial, mas quando se trata de defender a Margem Equatorial, foca no [suposto] caráter declinante das reservas já em exploração”.
Ao fim e ao cabo, todo esse discurso, pressão e lobby concorrem para um único ponto: o setor de exploração vive da geração de expectativas. As estimativas sobre a foz do Amazonas são um exemplo disso. “Os bilhões de barris de petróleo aventados na região são baseados em… nada. Têm por base análises geológicas do que acontece no Suriname e na África — onde não há nenhum poço em águas profundas”, diz a fonte. Pode ser que expectativa e realidade se choquem se a Petrobras obter a licença de exploração da foz do Amazonas. Mas isso não importa. “O combustível do setor de exploração na indústria do petróleo é a expectativa”.
O Ministério de Minas e Energia não disponibilizou fontes para entrevista até o fechamento da reportagem.