No Sertão mineiro, comunidade quilombola cria espaço coletivo abastecido com energia solar

Ao ver o turismo de base comunitária crescer na região, população apostou, pela primeira vez, na geração de energia fotovoltaica

Para a comunidade quilombola de Buraquinhos, no norte de Minas Gerais, receber “gente de fora” era uma realidade distante. Localizada no sertão do estado, a 35 km do município de Chapada Gaúcha, a comunidade tem cerca de 30 famílias, que costumam descrever o local  como “um lugarzinho sossegado”.  

“Antes, era muito difícil vir alguém desconhecido para cá, e a gente não sabia bem o que era turismo”, conta Antônio Lopes, o Tico, liderança tradicional da comunidade. 

O que os moradores não imaginavam é que o turismo chegaria e, com ele, outras mudanças. Uma delas foi a criação de um espaço coletivo de encontros, totalmente abastecido por energia solar. 

Placas solares instaladas na comunidade quilombola dos Buraquinhos. Foto: acervo pessoal de Antônio Lopes (Tico).

A comunidade é abastecida, já há alguns anos, com energia elétrica da distribuidora local (a CEMIG), mas o custo pesa no bolso dos moradores. Quando criou-se o espaço coletivo, veio também o problema de financiar a energia elétrica da nova construção, o que implicaria em um custo a mais para todos. Foi então que a energia solar apareceu como uma saída.

A construção do espaço coletivo foi fruto de um avanço do turismo de base comunitária no local, graças ao projeto de ecoturismo O Caminho do Sertão . 

O Caminho do Sertão

Inspirado na obra “Grande Sertão: Veredas”, um dos principais romances da literatura brasileira, do escritor mineiro João Guimarães Rosa, o Caminho do Sertão é uma trilha sócio-eco-literária de cerca de 190 km. O projeto une turistas para, ao longo de sete dias, percorrerem a pé o sertão mineiro, refazendo o percurso narrado nas memórias do personagem principal da obra, Riobaldo. 

“Quando criamos o Caminho do Sertão, nossa proposta foi a de promover o desenvolvimento territorial junto às comunidades locais, partindo do entendimento de que todo território é um território cultural”, conta Almir Paraca, um dos idealizadores do projeto. 

“Nós trabalhamos com o pertencimento ao território, porque isso é fundamental para se pensar qualquer tipo de ação ou política pública. Se as pessoas não se reconhecem como pertencentes àquele território, dificilmente elas se mobilizam. E nesse processo de promoção do pertencimento e da autoestima dos sertanejos, encontramos suporte em Guimarães Rosa”, conta Paraca. 

Participantes percorrem quase 200 km, pelo Cerrado. Foto: Marcela Martins

Parte significativa do caminho é atravessada por comunidades quilombolas. Segundo Paraca, no terço final da trilha está a chamada “Rota dos Quilombos” – Minas Gerais é o terceiro estado brasileiro com maior população quilombola do país. As comunidades quilombolas no Brasil são formadas por descendentes de negros escravizados, negros esses que se refugiaram na época da escravidão, formando comunidades autônomas, que até hoje mantém a cultura e as tradições dos seus grupos africanos de origem. 

De 2014 para cá, o Caminho do Sertão veio tomando proporções surpreendentes e, com elas, trouxe uma demanda cada vez maior por infraestrutura para receber os caminhantes. 

“Foi preciso estruturar as comunidades, construir núcleos e introduzir tecnologias sociais que atendessem tanto as demandas de turistas, quanto aquelas das próprias comunidades”, conta Sander Ulhoa Almeida, o Sandim, assessor parlamentar e companheiro de Paraca no desenvolvimento de projetos na região. 

Geodésica e energia solar

Foi assim que a comunidade quilombola de Buraquinhos ganhou uma Geodésica Sertaneja Multifuncional. As geodésicas são estruturas arquitetônicas em forma de cúpulas ou domos. Elas se assemelham a ocas indígenas e podem ser construídas usando diferentes materiais. Hoje, a Geodésica Sertaneja Multifuncional concorre ao Prêmio Fundação BB de Tecnologia Social

“A geodésica é um espaço comunitário e de fomento do exercício de debates coletivos”, conta Paraka. “A de Buraquinhos foi feita com palha de buriti, uma adaptação à realidade sertaneja”, explica. 

Agregados à geodésica, foram instaladas fossas de evapotranspiração, cujo processo permite tratar os dejetos, os quais vêm sendo usados como adubo em canteiros de bananeira. E, em janeiro deste ano, a estrutura ganhou a sua própria usina solar. 

Geodésica Sertaneja Multifuncional. Foto: acervo pessoal de Antônio Lopes (Tico).

Erguer a geodésica foi um processo rápido. O material, das madeiras da estrutura às palhas do teto, foi recebido pronto para ser utilizado na construção. Bastou a comunidade se juntar e, sob orientações de Sandim, em cerca de uma semana estava pronta a geodésica.

A estrutura foi erguida ao lado da casa de Tico. “É uma área mais central, onde toda a comunidade teria acesso”, conta o líder comunitário. 

Por causa da proximidade, à princípio era da casa de Tico que partia a eletricidade utilizada para operar a geodésica e os banheiros. 

“A geodésica é um espaço coletivo, que já estava sendo usado pela comunidade, mas todo o gasto com energia chegava na conta do Tico. Não era justo”, diz Sandim. “Então nós encontramos na usina solar uma maneira de beneficiá-lo, enquanto parceiro do projeto, e de também atender à demanda da comunidade”, acrescenta. 

A oportunidade se apresentou por meio da Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, uma empresa pública vinculada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. A partir de um projeto da empresa que disponibilizava “kits de energia solar”, Buraquinhos ganhou a sua própria usina, com 16 painéis. 

Bananeiras plantadas ao lado das fossas de evapotranspiração. Foto: acervo pessoal de Almir Paraca.

A geodésica conta com espaço coletivo para eventos e reuniões, uma cozinha comunitária e banheiros com chuveiros quentes, de uso coletivo. É uma estrutura coberta, que pode receber visitantes, e é usada diariamente pela comunidade para atividades diversas, graças a seu amplo espaço protegido do sol quente do sertão.  “São feitos eventos como festas tradicionais, também é um ponto de atendimento de saúde, como durante campanhas de vacinação, e um ponto de apoio para a comunidade de modo geral”, diz Tico. 

A chegada da usina solar viabilizou o uso do espaço sem custo adicional de energia. Beneficiou, ainda, o Tico, já que sua casa também é abastecida. “Antigamente, eu pagava cerca de R$100,00 por mês. Nos últimos seis meses, não chegou nenhuma conta, nem a da taxa mínima da CEMIG”, diz. 

A Companhia Energética de Minas Gerais é hoje responsável por todas as redes de distribuição de eletricidade no estado. “A usina da comunidade produz mais energia do que é consumida na casa do Tico e na geodésica. É como se fosse produzido o equivalente a uma conta de R$400,00, mas nem tudo é utilizado, então o que sobra é injetado nas redes da CEMIG”, explica Paraca. 

Até o momento, essa energia ainda não é distribuída para as demais famílias da comunidade. Sandim explica que, para arrecadar financiamento para os projetos desenvolvidos na região foi necessário criar uma instituição, o Instituto Rosáceas, que é oficialmente o beneficiário do projeto da Codevasf. A energia da geodésica está hoje em nome do instituto, o que impede que a distribuição aconteça para outras moradias. 

Solução para o semiárido

“Pouco se fala no assunto, mas o semiárido brasileiro é uma das regiões desérticas com maior concentração populacional no mundo – e essa população é marcada pelo menor acesso à infraestrutura, saneamento e meios de comunicação”, diz Wesley Matheus, antigo diretor do Observatório do Desenvolvimento Social de Minas Gerais, e consultor de governança e finanças do Banco Mundial.

“As comunidades da região são muito empobrecidas. Quase todas as famílias dependem de programas de transferência monetária do governo”, diz Paraca. Ele explica que, no quilombo dos Buraquinhos, mesmo a produção agrícola é muito pequena, porque a terra é seca  para o cultivo. 

“Essa pequena usina solar foi pensada para, em um futuro próximo, fornecer energia para abastecer um sistema de captação e distribuição de água tanto para o consumo humano, quanto para a irrigação”, diz Paraca. E o projeto já está em curso: a comunidade já recebeu canos e caixas d’água, que aguardam sua instalação. 

Buritis crescem em veredas na região. Foto: Marcela Martins

Paraca explica que a segurança alimentar e nutricional é uma das maiores preocupações. Ele vê na possibilidade de usar a energia solar para irrigação uma possível solução para melhorar a produção agrícola da comunidade e, com isso, a alimentação das famílias. 

Projetos como este têm relevância especial em contextos como o do sertão mineiro, onde é difícil que insumos, mercadoria, e mesmo eletricidade e saneamento cheguem pelas vias tradicionais. “A população do semiárido está organizada em pequenos grupos dispersos, e não há incentivos para que essas operações ocorram. Por não serem rentáveis, mesmo empresas estatais têm dificuldade de aprová-las junto a seus conselhos”, explica Matheus. 

Limitações do projeto

Além da impossibilidade de se distribuir o excedente de eletricidade para outros moradores, a instalação da usina não contou, até hoje, com nenhum tipo de assistência para sua manutenção. 

“Não houve, por exemplo, uma preparação da comunidade para fazer a limpeza correta das placas para que não criem uma barreira de poeira que bloqueie a chegada do sol. Até julho, na última edição do Caminho do Sertão, as placas nunca tinham sido limpas”, conta. 

Para Paraca, um futuro ideal envolveria muito mais do que capacitação para manutenção: “Nosso sonho é que, um dia, as próprias famílias sejam capazes de produzir placas solares para fornecer eletricidade para suas moradias e a produção de seu alimento.” 

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