Um mercado com muitas especificidades ainda sem regulamentação. No Congresso brasileiro, o principal projeto de Lei sobre um marco regulatório para o Hidrogênio Verde pouco avançou.
Em 24 de agosto deste ano o Governo Federal publicou um Plano de Trabalho Trienal do Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2), prevendo a criação de um arcabouço legal e regulatório para o desenvolvimento desta indústria no país até 2025. Apesar dos avanços, o documento não aborda um aspecto fundamental: metas para aperfeiçoar a legislação sobre licenciamento ambiental para o H2V.
Em entrevista à Climate Tracker, o Secretário Nacional de Planejamento e Transição Energética, Thiago Barral, disse que a criação da regulação para o mercado de hidrogênio de baixo carbono é uma das três prioridades do governo federal. Ele afirma que o Ministério de Minas e Energia (MME) tem uma minuta e pretende abrir um diálogo com o setor privado e com a sociedade civil para dar uma contribuição ao Congresso Nacional, que irá legislar sobre o tema.
“O marco regulatório para o hidrogênio de baixo carbono irá definir a agência reguladora da cadeia, trará clareza para a ‘taxonomia’ da indústria do hidrogênio e irá estabelecer quem vai creditar as agências certificadoras para trazer segurança jurídica e regulatória”, afirma Barral.
O programa nacional do hidrogênio (H2), lançado em julho de 2021 na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (2018-2022), foi atualizado pelo governo Lula (PT) com o plano trienal. Uma das ações prioritárias é aumentar os investimentos anuais em pesquisa, desenvolvimento e inovação em hidrogênio de baixa emissão de carbono. O valor passará de R$ 29 milhões investidos em 2020 para R$ 200 milhões por ano até 2025.
O novo PNH2 estabelece três metas com marcos temporais: que até 2025 sejam instaladas plantas piloto de hidrogênio de baixo carbono em todas as regiões do país; até 2030, situar o Brasil como o produtor mais competitivo de hidrogênio de baixo carbono do mundo; e até 2035, consolidar hubs de hidrogênio de baixo carbono no Brasil.
“É importante que a regulação seja definida dentro de uma estratégia de longo prazo intergovernamental, alinhada com o plano do país para a transição energética”, diz a economista Michelle Hallack, especialista em hidrogênio e consultora independente. Ela acrescenta que a regulação é importante e que idealmente passa por três eixos: sustentabilidade socioambiental, políticas econômicas e infraestrutura.
Projeto de Lei
No Congresso, a referência mais citada para a regulação do mercado de hidrogênio é o Projeto de Lei 725/22, de autoria do ex-senador e atual presidente da Petrobras, Jean Paul Prates. O PL foca em três aspectos: define o que é o H2 de baixo carbono, estabelece a Agência Nacional de Petróleo (ANP) como reguladora e delinea percentuais mínimos obrigatórios de volume para a inclusão do hidrogênio nos gasodutos de transporte.
Contudo, outras questões ainda precisam ser debatidas. “A produção, transporte e distribuição desse combustível apresentam desafios complexos, exigindo uma regulamentação clara e eficaz. Precisamos de normas técnicas que definam os padrões de segurança, qualidade e eficiência”, diz a professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Glaucia Fernandes, especialista em mercado de energia e regulação.
Além de fomentar incentivos fiscais e definir quem será o regulador, Fernandes reforça que é fundamental considerar os impactos socioambientais, como o desenvolvimento econômico local, criação de empregos, redução da desigualdade e promoção da justiça ambiental. Ela acrescenta que é importante incluir critérios para a gestão adequada dos recursos hídricos e a minimização dos impactos sobre a biodiversidade. O projeto de lei deixa isso de fora.
Sem regulamentação específica, licença ambiental fica na mão dos Estados
O licenciamento de plantas de hidrogênio no Brasil atualmente é feito em esfera estadual, conforme prevê a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) 237/1997. Ela dispõe sobre a revisão e complementação dos procedimentos e critérios utilizados para o licenciamento ambiental.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não atua para o licenciamento das plantas de hidrogênio, salvo em ocorrências offshore (marítimas) ou para a construção e adequação de alguma estrutura portuária. Um exemplo de ação conjunta, por exemplo, seria em potenciais eólicas no mar – cujo mercado também carece de regulação federal – para a produção de hidrogênio.
A fundadora e diretora-presidente da HL Soluções Ambientais, Laiz Hérida, destaca a urgência de atualização da resolução do Conama. “A resolução é da década de 90, elaborada com base em uma outra realidade. Temos uma nova cadeia produtiva que demanda um novo olhar”, afirma.
Hérida também reforça a importância de uma legislação nacional específica. A Lei Geral de Licenciamento Ambiental tramita no Congresso Federal há mais de uma década. “Há uma grande fragilidade, em escala federal, relacionada à ausência de definição de um marco do licenciamento ambiental, porque não adianta os estados fazerem suas legislações se a nível federal isso não for construído também”, observa.
Segundo a consultora, sem uma regulação federal, os estados ficam limitados no avanço dos projetos. Além disso, enquanto cada ente federativo legislar de forma independente, criam-se modelos distintos e precedentes para licenciamentos mais flexíveis que outros.
O movimento que acontece no Congresso vai na contramão de um licenciamento mais aprimorado. Na verdade, está em tramitação avançada um Projeto de Lei que pode significar retrocessos no licenciamento ambiental. Trata-se da proposta 2159/2021. O projeto é criticado por organizações da sociedade civil, que consideram o texto uma piora na legislação brasileira.
O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 2021, com base no PL 3729/04, e pode ser votado a qualquer momento nas comissões de Agricultura e Meio Ambiente do Senado Federal. No final de agosto, o Instituto Socioambiental (ISA) e o Observatório do Clima divulgaram uma nota técnica com propostas para reverter as ideias trazidas pelo PL.
Entre os pontos polêmicos da proposta estão as dispensas de licenciamento para 13 tipos de empreendimentos que sejam enquadrados como “melhoramentos”. Isso poderia resultar na isenção de licenciamento de atividades de alto impacto, como as associadas a hidrovias, portos, aeroportos, ferrovias e rodovias.
O texto do PL também transfere para cada ente federado (estado ou município) a responsabilidade de definir o que são as obras de baixo impacto. Atualmente, a lei diz que o licenciamento ambiental é necessário para empreendimentos com potencial de impacto ambiental, mas o processo é menos rigoroso para obras de baixo impacto.
O PL ainda prevê a limitação de condicionantes do licenciamento, de forma a diminuir os custos do empreendedor em caso de ônus para as comunidades, estabelece renovação da licença vencida ambiental apenas com preenchimento de declaração na internet e prevê, entre outros pontos, uma licença por adesão e compromisso (LAC) – isto é, permite que o empreendimento se “autolicencie” em formulário on-line, desde que se comprometa em ter boa conduta e seja passível de fiscalização.
Regulação estadual
O estado do Ceará é o único que tem uma resolução específica (nº 3/2022) para projetos de Hidrogênio Verde. A normativa foi aprovada pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente no Ceará (Coema).
A resolução estabelece a Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) como regulador e define que o processo de licenciamento para plantas de hidrogênio deve ser trifásico (licença prévia, licença de instalação e licença de operação).
Sob análise do regulador está um pedido protocolado pela CIPP, empresa que forma o Complexo Industrial e Portuário do Pecém, para o licenciamento de toda a área, tornando-a destinada à indústria do hidrogênio, para de estruturas comuns do hub, como corredores, serviços e área para tancagem.
O projeto de hub, voltado à exportação do hidrogênio de baixo carbono e seus subprodutos para a Europa, é formado por uma joint venture do estado cearense, que detém 70% do complexo, e o Porto de Roterdã, que detém os outros 30%.
Em entrevista, o superintendente da Semace, Carlos Alberto Mendes, classificou o projeto como positivo. “Com uma análise holística de toda a área, o ganho de tempo é muito grande, porque as próximas empresas que vierem já podem entrar com pedido de licença na fase de instalação, uma vez que a licença prévia está sendo analisada nesta etapa”.
O Brasil já registra US$ 30 bilhões em projetos anunciados de hidrogênio de baixa emissão de carbono em diferentes estágios de implementação, de acordo com o Ministério de Minas e Energia em 2022. Os portos brasileiros estão no centro desses investimentos.
Eólicas offshore e hidrogênio
O Ceará também é o estado com mais pedidos de licença para eólicas offshore, de acordo com o último mapeamento do Ibama. São 23, de um total de 78 no país.
Mendes afirma que o Estado não deve depender das estruturas marítimas para produção do hidrogênio verde, mas a corrida pelas eólicas no mar tem gerado preocupação em comunidades pesqueiras.
No Ceará, cerca de 70% das embarcações são movidas a vela e precisam de espaço para navegar, segundo pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC). A advogada e coordenadora do Instituto EcoMaretório Melka Barros, nativa da comunidade de pescadores Icaraí de Amontada, demonstra preocupação. “A pesca no Ceará é artesanal, com barco a vela que não se movimenta de forma linear e que pode ser afetado pelas estruturas no mar, o que compromete a soberania alimentar da região”, observa.
Ela cita ainda problemas como refúgio de pescado, mortalidade de aves e barulho. Para que não haja prejuízos à vida e ao trabalho da população, a pesquisadora defende a apresentação de garantias de que os parques eólicos offshore fiquem suficientemente afastados da costa. “A comunidade tem o direito de ser consultada e os povos não estão sendo informados de forma correta. Parece que a nossa opinião não tem valor e que estamos servindo como zona de sacrifício”, lamenta.
Para Gláucia Fernandes, professora da UFRJ e especialista em regulação, é importante incluir critérios para garantir que os direitos das comunidades locais e dos povos indígenas sejam respeitados no processo de produção de hidrogênio verde.
Plano para produção de hidrogênio inclui fontes com emissão de carbono
O PNH2 foca no desenvolvimento das rotas tecnológicas associadas à produção do hidrogênio de baixa emissão de carbono, o que inclui não só as fontes renováveis de energia, mas também combustíveis fósseis com captura, armazenamento e uso de carbono.
O chamado “hidrogênio verde” é gerado por meio da eletrólise a partir de fontes renováveis de geração de energia elétrica, principalmente solar e eólica, enquanto o hidrogênio de baixo carbono pode ser produzido de diferentes maneiras, inclusive por meio de combustíveis fósseis.
O programa brasileiro prevê que os percentuais mínimos de redução de emissões serão definidos na regulação e destaca isso como uma abordagem “pragmática” para não criar barreiras ao desenvolvimento do mercado.
“O foco de tudo que estamos fazendo é no hidrogênio de baixo carbono, até porque o mercado com gás natural e outras fontes fósseis já existe. Quando falamos que seremos inclusivos com essas rotas é no sentido de não excluir possibilidades de fazer o Brasil se tornar o país mais competitivo do mundo”, afirma Thiago Barral. O Secretário Nacional de Planejamento e Transição Energética destaca que o marco legal será importante para criar balizas e referenciais do que se enquadra como baixo carbono.
“Não há, em hipótese alguma, o mesmo tratamento para um hidrogênio à base de gás natural, por exemplo, e o hidrogênio de baixo carbono. Hoje existe uma disputa sobre que é e não é verde e quisemos fugir desse debate”, alega Barral, em resposta às críticas de que o Brasil ficará atrasado ao não apostar todas as fichas na rota com zero emissões.
“A própria IEA [Agência Internacional de Energia] recomenda abandonar a linguagem de hidrogênio de cores, que só atrapalha e atrasa o desenvolvimento do mercado”.
Diogo Lisbona, pesquisador do núcleo de estudos de Energia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), concorda que, embora os caminhos de produção a partir de fontes fósseis com captura de carbono não sejam ideais, são importantes para ajudar a desenvolver a indústria ainda incipiente de hidrogênio renovável.
“A estratégia nacional segue a de outros países que perseguem a rota verde por meio da baixa emissão de carbono. O essencial é entender o quanto de carbono há nesse processo e minimizar as emissões”, afirma.
Foco em exportação
O Brasil planeja fomentar, principalmente, o desenvolvimento de hubs de produção de hidrogênio em complexos portuários onde há plantas industriais para exportação. A Europa e a Ásia são os principais mercados endereçáveis.
O Parlamento Europeu estabeleceu metas para transição energética, como chegar a 20 milhões de toneladas de hidrogênio renovável na matriz — metade vindas de importações. Em meados de junho, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já havia anunciado, em reunião com o presidente Lula, que a União Europeia vai investir 2 bilhões de euros na produção de hidrogênio verde no Brasil.
Organizações da sociedade civil criticam o modelo exclusivamente exportador. A sócia-fundadora do Instituto Terramar Soraya Vanini Tupinambá, engenheira de pesca e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente, avalia que a indústria do hidrogênio verde está fazendo o mesmo percurso que outras, ao longo da história. “Esse caminho do hidrogênio brasileiro não difere da velha lógica colonial de exportadores de commodities e nos coloca de forma subalternizada”, afirma.
“Os gestores públicos dizem que será só no primeiro momento, que ainda não há capital para impulsionar essa indústria de maneira autônoma e que em um dado momento haverá capital para crescer [no mercado interno], mas essa conversa é repetitiva na nossa história”, acrescenta Soraya, que também é co-autora do estudo “Cenários, desafios e oportunidades para a produção de hidrogênio verde no Brasil: uma análise a partir do estado do Ceará”.
Órgão regulador
A definição de qual o órgão regulador mais preparado para lidar com as demandas brasileiras do hidrogênio verde divide opiniões. Alguns especialistas acreditam que seria a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), enquanto outros defendem a criação de um novo regulador.
A ANP já regula atualmente a produção de hidrogênio no Brasil a partir de fontes fósseis, como o gás natural. Fernandes acredita que atribuir à ANP a responsabilidade pela regulação do hidrogênio sustentável ajudaria a garantir a segurança energética, a competitividade e a sustentabilidade ambiental do país.
“A ANP pode desempenhar um papel central na regulação, concentrando-se especificamente na produção, transporte e distribuição do hidrogênio verde. Enquanto isso, outras questões relacionadas às competências de agências como a Aneel ou a ANA podem ser abordadas por meio de resoluções conjuntas, seguindo um modelo coordenado por essas instituições”, avalia Fernandes.
Por outro lado, Hérida, defende a criação de um novo órgão regulador. “Considero importante haver separação para colocar o foco principal na pauta renovável dentro do desenho de uma economia de baixo carbono mais ampla. Quando se coloca tudo sob um guarda-chuva bastante carbonizado, dificilmente se consegue desenhar caminhos verdes”, avalia.