O desejo de encontrar um modelo de produção energética mais acessível e renovável uniu um grupo de 25 pessoas de diversos municípios do estado da Paraíba, no Brasil, em 2019. O objetivo era inovador: ter acesso à energia solar por meio de uma cooperativa autônoma.
Dois anos mais tarde, o sonho foi concretizado com a fundação da Cooperativa de Compartilhamento de Energia Solar Bem Viver.
A iniciativa nasceu no Comitê de Energia Renovável do Semiárido (Cersa), um coletivo que desde 2014 reúne professores, ativistas socioambientais, ONGs e pesquisadores que veem potencial no semiárido brasileiro para uma transição energética justa no país.
Desde a sua fundação, o Cersa é considerado uma referência entre os movimentos sociais. Até hoje, o grupo já encabeçou 44 projetos fotovoltaicos em diversas comunidades na Paraíba.
Entre os projetos solares do Comitê estão instalações de sistemas fotovoltaicos em diferentes contextos, como estabelecimentos comunitários, agroindústrias e escolas. Um sonho dos envolvidos, porém, era viabilizar um modelo de cooperativa que pudesse oferecer energia solar para diversas casas consumidoras.
A mudança na própria casa
Os cooperados residem em localidades diversas, que podem ser separadas por quase 500 quilômetros de distância, ainda que todos no mesmo estado da Paraíba. Alguns só se viram presencialmente pela primeira vez durante a inauguração da usina solar. A diversidade de ocupações e idades e a distância física não impediu que este grupo compartilhasse do mesmo desejo de impulsionar uma transição energética justa e cooperativa.
Walmeran José Trindade Júnior é um dos membros do Cersa, e foi um dos interessados em participar da cooperativa, com o objetivo de ter energia renovável na própria casa. Ele conta que a motivação não foi apenas econômica. “O projeto coloca em prática um ideal de vida que valoriza o respeito à natureza e o cooperativismo”, pondera. “Toda a nossa educação é voltada para o individualismo e para buscar o sucesso econômico. Na cooperativa buscamos a ação coletiva em todos os aspectos da implementação e da gestão do empreendimento”.
No dia 30 de dezembro de 2022, o abastecimento por energia solar passou a ser possível, com o início das atividades da Usina Solar Bem Viver no município de Maturéia, na Paraíba. O local escolhido para a instalação foi o Centro de Educação Popular e Formação Social, organização que busca soluções para o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar no semiárido.
A usina tem atualmente uma potência instalada de 38,2kWp, mas pode chegar a 70kWp, podendo atender até cerca de 40 famílias, explica Júnior, que também é professor do curso de Engenharia Elétrica no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, e coordenador técnico do projeto.
Foram 83 módulos fotovoltaicos de 460Wp instalados, o que gera em média 5600kWh de energia elétrica por mês que é dividida igualmente entre os sócios.
O projeto ainda tem um sistema de coleta de água de chuva composto por duas calhas no solo e uma cisterna de 15 mil litros de capacidade. A tecnologia permite a captação da água para a manutenção da usina, que requer a limpeza das placas para o seu bom funcionamento. “É uma demonstração de uma adequação sociotécnica para o bioma caatinga”, explica Júnior, em referência às condições semiáridas da região.
Informar pelo exemplo
O objetivo do Cersa é que a cooperativa Bem Viver seja reconhecida como um modelo a ser seguido, assim como outros projetos do Centro já são. “A gente percebeu que não bastava só o debate sobre as energias renováveis, eram necessários exemplos”, conta César Nóbrega, membro do Cersa. Com a experiência, o coletivo almeja informar a sociedade, incidir nas políticas públicas e inspirar soluções energéticas.
Em 2016, a resolução 687 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) permitiu a geração de energia compartilhada via cooperativa, o que despertou o interesse do coletivo em colocar esse modelo de geração descentralizada em prática, explica Júnior.
Porém, só foi possível executar a ideia anos depois, graças ao apoio financeiro do projeto “Cuidando da Nossa Casa Comum”, uma parceria do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, Cáritas Brasil, Misereor (Organização dos Bispos Católicos Alemães para a Cooperação para o Desenvolvimento) e a Ação Social Diocesana de Patos, cidade da Paraíba.
Para financiar o projeto, 22 dos 25 sócios investiram no inversor (equipamento que converte a corrente contínua do sistema solar em corrente alternada que pode ser utilizada pelas residências), que é o mais caro do sistema, e em parte dos painéis. A Misereor colaborou para pagar a parte restante dos painéis. Todo o processo de instalação da usina, desde a preparação do solo até os painéis fotovoltaicos, custou cerca de 250 mil reais brasileiros.
Apesar do valor inicial alto, José de Anchieta, um dos cooperados e membro do Cersa, diz que o investimento compensa, com o passar do tempo. Ele conta que em sua casa antes a conta de luz era em torno de 180 reais mensais e que hoje, recebendo energia da cooperativa solar, paga cerca de 50 reais.
A economia acontece devido ao sistema de compensação de energia elétrica definido pela Aneel, que gera um abatimento equivalente ao montante de energia renovável injetado na rede distribuidora. “Cada cooperado recebe cerca de 200kWh de energia por mês da usina, o que equivale aproximadamente a 140 reais de desconto da fatura de energia mensal”, explica Júnior.
O investimento, quando compartilhado por meio de cooperativa, é menor do que o da instalação para apenas uma unidade consumidora. No modelo individual é necessário comprar um inversor para cada casa, enquanto na cooperativa há um inversor mais potente para todos os cooperados, coloca Nóbrega.
No caso da usina solar, o preço do equipamento ficou aproximadamente 3 mil reais por quilowattpico. Em uma casa pequena, o valor gira em torno de 6 mil reais por quilowattpico. Numa casa média, o sistema completo ficaria em torno de 12 mil reais, explica Nóbrega.
Nova cultura
“Minha família tem consciência que a nossa energia elétrica vem da natureza. Que há uma intervenção na natureza para a produção, que deve ser a mais equilibrada possível”, relata Júnior. A primeira motivação para a criação da cooperativa é o fio condutor de todas as discussões do Cersa desde a sua fundação: reduzir o impacto das mudanças climáticas no semiárido brasileiro.
Com as mudanças climáticas, a tendência é que a região sofra secas prolongadas e agravamento da desertificação no local. “Discutimos a questão energética junto com o respeito à natureza, reconhecendo que fazemos parte dela. Não podemos mais ter uma produção que retire mais da natureza do que ela pode repor”, afirma. Isso implica na criação de um novo modo de vida, avalia Nóbrega.
Pensando nisso, o coletivo trabalha com o conceito de uma “economia solidária solar”, que busca promover a inserção do uso das energias renováveis nos arranjos produtivos solidários (união de pessoas em torno de atividades produtivas que se apoiam para gerar renda de forma coletiva), “o que também contribui para a geração de trabalho e renda”, explica Nóbrega.
Modelo coletivo de geração de energia
A cooperativa quer propagar o modelo coletivo de geração de eletricidade, no qual a própria comunidade organiza e gere o sistema fotovoltaico. O grupo acredita que é dessa maneira que a transição energética no País pode ser verdadeiramente justa. “A tecnologia é só um instrumento”, diz Nóbrega.
A primeira escolha do Cersa era facilitar a criação da cooperativa e a instalação de uma usina solar em um assentamento agrícola na comunidade de Novo Horizonte, na cidade de Várzea, também na Paraíba. Porém, ao participar de uma cooperativa, os agricultores perderiam o seu direito à aposentadoria especial. No Brasil, alguns trabalhadores rurais, como agricultores familiares e pescadores artesanais, têm direito a se aposentar com um salário mínimo sob diversas condições. Por isso, optou-se por formar a cooperativa fora desse contexto com pessoas de diferentes áreas, como professores, aposentados e colaboradores de movimentos sociais.
O caso do assentamento de Vázea mostra como, muitas vezes, a legislação não acompanha em tempo hábil mudanças importantes. A lei foi criada para evitar que pessoas recebam o benefício federal sem necessidade, o que explica o impedimento de que estejam envolvidas em uma cooperativa que possui fins econômicos. Mas, no caso da energia solar, a existência de cooperativas tem um objetivo específico, que não caracterizaria um ganho de renda a mais para essa população.
No entanto, com a nova Lei 14.300 de 2022, o Comitê viu uma segunda chance para concretizar o projeto no assentamento. A legislação possibilitou a geração compartilhada por meio de associação civil, que consiste na união de pessoas que se organizam para fins não econômicos.
Assim, o grupo instalou uma segunda usina fotovoltaica na comunidade Novo Horizonte, a Bem Viver II, que está em processo de homologação por meio de associação civil, uma figura jurídica mais flexível, diferente da cooperativa.
Essa usina tem 13,2kWp instalados, com 28 módulos fotovoltaicos de 470Wp. Júnior explica que ela já está na sua capacidade máxima e irá atender parcialmente a todas as 25 famílias do assentamento.
Desafios com legislação e burocracia
Os principais desafios enfrentados pelo grupo que forma a cooperativa foram burocráticos. Primeiro, Romero Antônio, então presidente da cooperativa, relata que todo o processo foi “difícil, lento e desorganizado”. Além disso, o grupo não sabia como funcionava o registro e acabou enfrentando mais entraves do que esperavam. “Tem uma série de peculiaridades e condições para o enquadramento da cooperativa na legislação”, conta.
Outros desafios da criação da cooperativa foram a formação de um grupo de pessoas com interesses comuns e a arrecadação de recursos financeiros para viabilizar o empreendimento, relata o coordenador técnico.
Trata-se de um projeto com diferentes etapas necessárias que também apresentam suas dificuldades específicas: elaborar o estatuto, fundar a cooperativa, registrar a documentação, investir nos equipamentos fotovoltaicos, submeter o projeto técnico à concessionária e fazer a autogestão seguindo os princípios do cooperativismo, detalha Júnior. “Apesar das dificuldades, a soberania energética e a sua autogestão valem muito a pena”, conclui ele.
Nóbrega opina que muitos dos atuais modelos de empreendimentos de energias renováveis seguem uma concepção “velha” que não é compatível com os esforços por uma economia mais verde e justa. A implantação de grandes complexos de geração de energia na Paraíba tem provocado denúncias de danos ao meio ambiente de dezenas de populações tradicionais, como quilombolas e agricultores familiares, que vivem próximos aos empreendimentos. Por isso o exemplo da cooperativa é importante.