“Um dia eu quero só ressaltar as belezas do meu Marajó. Dizer o quanto lá tem gente boa que conserva, preserva e protege o meio ambiente. A paisagem é bonita, a floresta é generosa, a terra é mãe, a água é vida. Mas, no meio dessa riqueza, temos os menores IDHs do Brasil. É um território que passa por um processo histórico arquitetado de epistemicídio, a morte da floresta e dos povos originários”.
“Qual a relação da falta de água da cidade com a Amazônia, com os povos e as comunidades tradicionais? Pouca gente vai ter uma reflexão sobre isso, a maioria vai continuar indiferente a essas questões, achando que os povos indígenas que estão lutando contra o marco temporal é só um problema dos indígenas. Desconhecemos nossa própria história. A gente não tem consciência da nossa conexão com a natureza. Qualquer questão sobre as mudanças climáticas, os territórios são as últimas fronteiras do equilíbrio do planeta. Sem floresta em pé, não tem mais clima no mundo”.
Aos 9 anos, Edel Moraes teve que deixar a sua comunidade, a sua família e a sua terra no Arquipélago do Marajó, na região amazônica do norte do Brasil, para trabalhar e estudar na cidade. Nascer marajoara, cabocla e filha de extrativistas é quase uma sentença de ter seus direitos violados, quase como se não fosse gente. Infelizmente, ela entendeu isso muito cedo. Após mais de 20 anos de luta em defesa dos povos e territórios tradicionais do Brasil, ela ecoa incansavelmente o reconhecimento do que deveria ser óbvio:“na floresta tem gente”.
Sair de casa ainda na infância não foi uma escolha, entrar para a luta também não. Edel não se vê como ativista porque não é uma opção, mas uma questão de sobrevivência. “A floresta não é uma causa, ela é a nossa vida. Nós somos parte dela. Defender a floresta em pé é defender os povos que ali existem”. Ao invés de meio ambiente, naquilo que ela chama de “todo ambiente” gente e território são um só.
“Nós não somos invisíveis, somos invisibilizados”, repete em cada denúncia que faz. Seja na universidade, na audiência pública ou em águas internacionais, como na Cúpula do Clima, Edel leva para todo canto a mensagem de que os povos da floresta vivem, conservam e protegem o ambiente, prestando um serviço para toda a humanidade. Porém, suas vidas continuam sendo constantemente ameaçadas, especialmente pelo “desmonte de políticas públicas ambientais promovido pelo próprio governo”, alerta. O Adote Um Parque, programa de doações de bens e serviços por empresas e pessoas físicas para Unidades de Conservação, é um exemplo disso.
Edel participa em tantas frentes que não caberiam neste texto. Entre elas, é vice-presidente do Memorial Chico Mendes, organização filiada ao Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS, antes denominado Conselho Nacional dos Seringueiros), do qual também já foi vice-presidente. Participa ainda do Grupo de Estudos e Práticas Dialógicas no Contexto de Povos e Comunidades Tradicionais da Universidade de Brasília.
No berço dos açaizeiros
Do rio Pagão, nasce uma guardiã da floresta. Edel foi uma criança feliz na comunidade de Boa Esperança, em um assentamento agroextrativista no município de Curralinho, no Marajó, arquipélago entre os estados do Pará e Amapá. De Belém, a capital paraense, são cerca de três horas de barco até o Marajó, a depender do local do desembarque. A comunidade de Edel, na zona rural, fica há uma hora e meia de carro da parte urbana de Curralinho.
Os dias ao lado dos pais, comendo na beira do rio o que a natureza cria, foram substituídos por dias de trabalhos domésticos para que conseguisse “pagar” para estudar. “Onde eu nasci, a educação só acontecia até a 4ª série. A partir daí, se você queria que seu filho estudasse, precisava tirar ele da comunidade”, conta. Em casas de família, as bonecas da infância eram os filhos dos outros.
Com a compreensão que tem hoje, Edel reconhece que foi uma escrava doméstica. A dor do trabalho infantil não tinha refúgio, já que longe de casa e da família qualquer dificuldade fica pior, ainda mais para uma criança. A menina não aguentou ficar longe e voltou para os braços dos pais e da floresta. No entanto, sem outra opção, com 11 anos ela retornou à cidade, onde ficou até se tornar adulta.
No pouco tempo que ficou no Marajó, as canções de ninar já eram os gritos de luta que levaria por toda a vida. “Eu dormia ao som de ‘vem, vamos embora, que esperar não é saber’”, lembra enquanto recita os versos da música “Para não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré. Os seus pais, Miracélia Moraes e Dulcimar Moraes, eram envolvidos nas Comunidades Eclesiais de Base, no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e participaram dos movimentos de regularização fundiária. A sua mãe, sua referência, foi uma das primeiras líderes da Pastoral da Criança no território e esteve presente nas primeiras Marchas das Margaridas, manifestação das trabalhadoras rurais brasileiras.
O fruto não caiu longe do pé. As raízes de defesa da terra, da igualdade e da natureza cresceram no coração de Edel. Após concluir o ensino médio, aos 20 anos ela voltou para a sua comunidade com o desejo de fazer justiça. “Com sangue nos olhos”, como ela diz, começou a lutar para que mais nenhuma criança marajoara tivesse que vivenciar as violações que ela sofreu.
As flores do que foi semeado
Logo após o retorno, em 2001, Edel foi eleita para a primeira composição do Conselho Tutelar no seu município e entrou de cabeça nos esforços pelos direitos das crianças e adolescentes. Desde então, participa de inúmeros projetos, movimentos e organizações sociais pelas comunidades extrativistas. Em mais de duas décadas de trajetória, nem ela mesma consegue lembrar de tudo.
Ela realizou o sonho de ser a primeira da família a entrar na universidade, onde cursou Pedagogia. Depois, fez uma especialização em Educação do Campo, Desenvolvimento e Sustentabilidade e um mestrado em Desenvolvimento Sustentável em Povos e Territórios Tradicionais.
O acesso à educação foi a virada de chave na vida de Edel, e ela queria proporcionar o mesmo aos marajoaras. Para mudar a realidade dos altos índices de analfabetismo do seu município, Edel coordenou de forma voluntária um projeto com mais de 40 turmas de alfabetização de jovens e adultos. Com base nesse projeto, foi criado o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova Pará Alfabetizado), programa do governo do estado do Pará.
Sob assessoria pedagógica de Edel, o Mova Pará Alfabetizado atingiu todo o Arquipélago do Marajó, região em que 22% da população a partir de 15 anos é analfabeta, enquanto a taxa do Brasil é de 9,6%, segundo o último censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Eu posso não ganhar dinheiro com a maioria dos trabalhos que faço, mas o meu pagamento são as conquistas. É quando o direito de uma criança deixa de ser violado. É quando uma pessoa adulta aprende a ler e escrever e pede para fazer um novo RG em que possa assinar o seu nome”, explica a defensora, emocionada.
Por um território coletivo
Já é difícil conceber como o dia de Edel cabe em 24 horas, mas o cenário fica ainda pior quando os desafios entram na conta.“É um território rico do ponto de vista da sociobiodiversidade, mas pobre do ponto de vista econômico. Essa conta não bate”, afirma.
Dos 16 municípios que formam o Arquipélago do Marajó, 14 têm IDHs baixos ou muito baixos, segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano do Brasil. As comunidades sofrem com saneamento básico precário e tratamento de água ineficaz, motivo de doenças na região. Ainda, não são todos os lugares que contam com energia elétrica, sinal de telefone e internet. Na comunidade de Edel, por exemplo, a energia elétrica chegou faz cerca de dois anos, devido à pressão popular que conseguiu descer a conexão dos linhãos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que passavam por cima das casas, mas não chegavam nelas.
Em meio a tantas dificuldades, o Marajó possui uma forte história de organização e mobilização social. O CNS é o principal reflexo disso. Fundado em 1985 por um grupo de seringueiros, — entre eles Chico Mendes, importante ambientalista brasileiro —, o conselho atuou contra a devastação da floresta e a expulsão das populações extrativistas de suas terras na Amazônia. O resultado foi o reconhecimento das Reservas Extrativistas (Resex), em 1990, como territórios por todo o Brasil que protegem as formas de vida e a cultura das populações extrativistas, que fazem o uso e o manejo sustentável dos recursos naturais para subsistência.
“O rio é rua e é fonte de alimentação. Além dos frutos, as árvores nos dão as nossas referências de demarcação. A gente defende um território que não é só um pedaço de terra, mas uma territorialidade onde é exercida a nossa forma de vida, a ancestralidade e espiritualidade, dimensões para além daquilo que é mensurável”, explica Edel.
Além da sua atuação na educação, ela sempre acompanhou os debates de regularização fundiária. Foi relatora da audiência pública para a criação da Resex Terra Grande – Pracuúba, em Curralinho (PA), uma conquista frente a empresas que ameaçavam expulsar os moradores do território.
Por seu envolvimento no movimento extrativista, Edel foi a primeira mulher vice-presidente do CNS em mais de três décadas de história. Quando ela visitou a casa de Chico Mendes, em Xapuri (AC), sentiu a energia que confirmou que ela fazia parte do legado do seringueiro. “Eu falei para ele: ‘companheiro, se você estiver em outro plano, pode seguir tranquilo, você continua muito vivo aqui. Eu vou continuar sendo instrumento da sua voz e luta, que também é de muitos”, conta.
Filha que também é mãe
Por conta das suas atuações, Edel precisou passar muito tempo longe do seu território. Na floresta de pedra, ela vai se descobrindo mulher da amazônia. Reconhecia cada dia mais que a sua identidade era conectada com o território que tinha deixado. Edel era filha, mas também mãe da floresta.
“Nós não somos órfãos para sermos adotados. Nós somos filhos da terra, filhos da floresta”, esbravejou Edel na primeira reunião do Grupo Carta de Belém sobre o programa Adote Um Parque, lançado pelo Ministério do Meio Ambiente em fevereiro deste ano. “Estão leiloando os territórios com a gente dentro, sem nem nos perguntar”, declarou aos participantes, que fazem parte de uma rede de defesa dos direitos socioambientais.
Décadas de conquistas estão hoje ameaçadas por um pacote de desmontes das políticas ambientais, afirma Edel. Entre as ameaças está o Adote Um Parque, programa que incentiva a doação de bens e serviços a Unidades de Conservação (UC) da Amazônia por empresas ou pessoas físicas. A iniciativa é apresentada como possível solução para a falta de orçamento do órgão gestor das UCs, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Em 2021, o governo do presidente Jair Bolsonaro realizou um corte de 24,4% no orçamento do ICMBio em comparação com 2019.
Na primeira fase do programa serão contempladas 132 UCs, entre elas 50 Resex. Em troca das doações, as empresas poderão instalar identificações com a sua marca no local, colocar em publicidades que são parceiras da Unidade de Conservação adotada, além de fazer o uso do território para atividades institucionais temporárias e se inserir no plano de manejo.
“Não há nenhuma previsão que autorize o Ministério do Meio Ambiente a dispor da área sem autorização da concessionária e do Conselho Deliberativo da UC para finalidades não previstas no respectivo plano de manejo”, coloca Edel.
São várias quebras de regras e regulamentações, segundo os movimentos contrários ao programa. Edel ressalta que a medida não respeita o que determina o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que prevê que todos os povos tradicionais devem ser consultados, de forma livre e informada, antes de decisões que possam afetar seus bens ou direitos.
Para Edel, o programa ameaça a autonomia das comunidades em detrimento do greenwashing (lavagem verde, em inglês), na qual empresas passam uma imagem de preocupação com a sustentabilidade, mas não mudam seus modos de produção que impactam o meio ambiente. Até o momento, nenhum território foi adotado oficialmente, mas já existem oito protocolos de intenção de grandes empresas internacionais como Carrefour, Coca-Cola e Heineken, interessadas na Resex Lago do Cuniá (Rondônia), na Área de Relevante Interesse Ecológico Javari-Buriti (Amazonas) e na Resex Quilombo do Frechal (Maranhão), respectivamente.
A falta de transparência do programa também é um ponto criticado. Os protocolos de intenção firmados pelas empresas interessadas não foram publicados pelo MMA, “o que é uma violação do princípio da publicidade da administração pública”, pontua Pedro Martins, assessor jurídico da Terra de Direitos. Além disso, o decreto não deixa claro quais bens e serviços poderão ser transferidos pela iniciativa privada, assim como não houve ainda a divulgação dos planos de trabalho das empresas interessadas, explica Suely Araújo, especialista em Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
A situação piora porque acontece em meio à pandemia, complementa Edel. As comunidades têm pouco ou nenhum acesso ao sinal de telefone e internet, que são os meios de resistência durante a pandemia. Edel só pode se comunicar para essa reportagem porque estava em Belém, capital do Pará. “É fazer a boiada passar num momento que não podemos reagir”, critica.
[OLHO] “A empresa adotante está na verdade alugando o território. As comunidades tradicionais são simplesmente ignoradas. Imagine se eu chego e digo que a partir de agora a sua casa não é mais sua e as regras são minhas? São novas formas de epistemicídio, uma destruição que começou na invasão do Brasil e que continua agora de forma institucional. Esses são os nossos últimos espaços de resistência e existência”.
O Adote Um Parque faz parte de um contexto que mostra o desinteresse deste governo em relação ao meio ambiente e às comunidades tradicionais, em detrimento de políticas que geram lucro, colocam os especialistas. Nos dois primeiros anos da presidência de Jair Bolsonaro aconteceram as piores devastações de áreas protegidas da Amazônia desde 2008, segundo levantamento do Instituto Socioambiental com dados do do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Porém, cerca de R$ 2,9 bilhões para ações de preservação do Fundo Amazônia estão paralisados desde abril de 2019, após o Brasil alterar a estrutura de administração do fundo sem consultar a Noruega e Alemanha, países doadores do projeto.
Além disso, em abril de 2021, o Acordo Regional sobre o Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, conhecido como Acordo de Escazú, entrou em vigor, mas o Brasil ficou de fora. “O governo Bolsonaro tem um projeto de destruição de 40 anos de políticas publicas ambientais”, alerta Araújo.
Edel também é gente
“É difícil ficar longe do tempo da floresta, na floresta de pedra a vida é muito complicada. Entre idas e vindas, eu sinto falta do tempo que lá não vivi”, confessa Edel. Uma vez, depois de três meses rodando o norte do Brasil, ouviu de uma pessoa do Marajó que tinha inveja da sua vida e viagens. “Na ocasião, quando cheguei em Belém, não tinha dinheiro para voltar para casa. Fiquei dois dias lá, até conseguir emprestado”, relata. No fundo, às vezes ela só queria estar em casa com a família.
Na missão de garantir o bem viver das próximas gerações dos povos tradicionais, Edel diz que sempre viveu uma “povoada solidão”. “Meu filho ficou homem e eu nem vi ele crescer”. O preço da luta não é pequeno. A sua história pessoal se mistura a uma história coletiva, pela qual se sente responsável. “Mas eu também sou mulher, quero marido, quero filho. É preciso aprender a dosar tudo isso”. Edel também é gente.
[OLHO] “No começo pensei que estivesse lutando para salvar seringueiras. Depois, pensei que estava lutando para salvar a Floresta Amazônica. Agora, percebo que estou lutando pela humanidade” Chico Mendes
Desde sempre, não foi uma opção. Assim como Chico Mendes, Edel sabe que sua luta não é apenas pelos seus próprios direitos: “A sociedade brasileira não compreendeu que ela é responsável pelos territórios, que ela não vai defender as comunidades e povos tradicionais, ela vai defender a si mesma. Essa concepção de que a sociedade está separada, de que campo e cidade não tem relação, é uma visão completamente errada”.
Este artigo faz parte do projeto “Defensoras do território” do Climate Tracker e FES Transformación.
Esta história foi publicada originalmente no UOL em 9 de setembro de 2021 e faz parte do projeto “Defensoras do território” do Climate Tracker e FES Transformación.