Brasil perde a chance de liderar debates sobre uso de Inteligência Artificial na transição energética

Inteligência artificial pode prever séries temporais, detectar falhas e otimizar produção e consumo de energia, mas Brasil não deixa claro como pretende usar tecnologia

Liderados pelo Brasil, as Academias de Ciência dos países do G20 se reuniram, nos primeiros dias de julho, para formular recomendações às maiores economias do mundo sobre o que julgam ser fundamental na área de Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento socioambiental global nos próximos anos. O uso da Inteligência Artificial (IA) como propulsora da transição energética, tema cada vez mais premente num mundo que precisa passar pela descarbonização, no entanto, ficou ao largo das discussões. 

Chamado de Science 20 (S20), o grupo elaborou um documento, ainda não publicado, que contém cinco eixos temáticos. Os temas “Inteligência Artificial” e “Transição Energética” estavam entre eles. Mas a integração e interação entre eles, não.

Entre as quatro recomendações sobre IA que saíram do Science 20, estavam: “Contribuir para estabelecer regulamentações de IA e padrões de governança de dados de maneira justa e que defendam valores humanos”, “Trabalhar em conjunto para criar e compartilhar grandes conjuntos de dados científicos valiosos e bem acurados”, “Buscar estabelecer estruturas intergovernamentais para supervisionar tecnologias de IA que posam operar além do controle ou supervisão humana” e “Criar políticas […] fundamentadas em princípios éticos compartilhados para assegurar inovação casada à segurança no emprego e direitos dos trabalhadores”.

Inteligência artificial pode prever séries temporais, detectar falhas e otimizar produção e consumo de energia

No eixo de “Transição Energética”, o S20 recomendou que “os esforços gerais para reduzir as emissões no processo de transição energética devem se basear no aumento do uso de fontes de energia com baixas emissões, em combinações variáveis de um país para outro, avançando para eliminação progressiva do cavão” e “A captura e armazenamento de carbono devem ser utilizados para minimizar as emissões de CO2 dos combustíveis fósseis”. 

Segundo Giovanna de Miranda, especialista em Relações Internacionais e Resolução de Conflitos, como relacionar um tema ao outro passou longe das discussões do grupo científico do G20.

“A gente não tem visto dentro das discussões do G20 um posicionamento oficial a respeito do uso da inteligência artificial para a transição energética”, disse Miranda, que atualmente é gerente de Comunicação e de Programa do Climate Policy Iniciative (CPI/PUC-RJ).

Atraso interno

Mapeada e discutida por entidades governamentais e considerada um setor estratégico pelas empresas privadas do setor energético, a Inteligência Artificial (IA) tem sido apresentada como possibilidade de aplicação chave para a transição energética brasileira. 

Apesar das discussões acadêmicas e do consenso quanto às potencialidades dessa tecnologia, no entanto, no Brasil a real aplicação da IA pouco avança no setor energético. Sobram relatórios, falta materialidade. 

As novas tecnologias de suporte – estando aí incluídas a própria IA, realidade virtual e aumentada e blockchain – estão incluídas nos temas estratégicos do Plano Quinquenal de Inovação 2024-2028 da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), apresentado à sociedade em outubro de 2023 pelo governo brasileiro. 

A Inteligência Artificial, no entanto, foi mecionada de forma rasa no documento, sem detalhes sobre suas aplicabilidade ou cronograma de testes. Procurada para esclarecer tais assuntos, a ANEEL não respondeu às tentativas de contato até o fechamento desta reportagem.

Setor eólico é o de maior maturidade em testes e aplicações de modelos de inteligência artificial na operação. Foto: Vitor Paladini/Unsplash

De acordo com relatório do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), também publicado em 2023, diversos sistemas baseados em IA passaram por fase experimental no Brasil nos últimos anos, com destaque para modelos de correção da previsão de vento, de desligamento da rede em caso de queimada e de estimativa de precipitação nas bacias. 

A ONS atua, principalmente, no planejamento e operação do Sistema Interligado Nacional (SIN), um conjunto de subestações e linhas de transmissão energética que conectam as usinas geradoras, de várias fontes de geração, aos centros de consumo no país.

Para o pesquisador Álvaro Coutinho, coordenador do Núcleo de Atendimento a Computação de Alto Desempenho (Nacad), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o setor eólico é o de maior maturidade em testes e aplicações de modelos de inteligência artificial na operação. “O sistema de correção de previsão de vento é um exemplo. Ele permite que sejam feitas previsões de velocidade, fornecidas por modelos meteorológicos, que mostram desvios das séries históricas e permitem a correção de falhas e melhor aproveitamento do recurso natural para geração de energia”, disse à reportagem.

Desde 2021, a Universidade Federal do Rio de Janeiro está em processo de criação de um Centro de Excelência em Inteligência Artificial para Energias Renováveis. As pesquisas e projetos desenvolvidos no Centro contam com parceria de outras universidades brasileiras, empresas de energia e grupos privados do setor. 

Até o momento, projetos com energia eólica e hidrogênio são os mais avançados no desenvolvimento da aplicação de IA para otimização de processos. As iniciativas, no entanto, ainda não possuem resultados concretos a serem apresentados.

Múltiplas aplicabilidades

Sistemas baseados em IA podem auxiliar em modelos de correção da previsão de vento em parques eólicos, por exemplo. Foto: Heverton Nascimento/Unsplash

Os potenciais de aplicação da Inteligência Artificial no setor elétrico são, de fato, amplos: previsão de séries temporais (clima, vazão de rios, consumo de energia); smart grids com algoritmos para detecção de falhas e otimização da rede; detecção de fraudes; otimização de projetos de dispositivos (reatores, turbinas eólicas) usando algoritmos evolutivos e geração distribuída com consumidores. 

“No contexto de transição energética, uma aplicação de grande importância é na previsão de séries temporais. Essas séries podem envolver tanto fatores climáticos ligados, por exemplo, a vazões, ao regime de chuvas ou à incidência solar, quanto fatores ligados à consumo, demanda ou preço”, reforçou à reportagem o pesquisador Romis Attux, do  Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (CPTEn), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Segundo o relatório “Uso de novas tecnologias digitais para medição de consumo de energia e níveis de eficiência energética no Brasil”, da German-Brazilian Energy Partnership, a aplicação da Inteligência Artificial (IA) e da tecnologia blockchain à digitalização do setor elétrico é capaz de transformar a geração, armazenamento e consumo de energia no Brasil. 

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi procurado pela reportagem, em diferentes ocasiões, para esclarecer como as iniciativas descentralizadas de universidades e empresas brasileiras sobre uso de AI na descarbonização da matriz elétrica dialoga com planos oficiais nacionais sobre o assunto. Até o fechamento da reportagem, não houve resposta. O espaço permanece aberto.

O "hype" da IA: herói e algoz

De acordo com a Agência Internacional de Energia, os data centers globais mais que dobrarão sua capacidade de eletricidade consumida até 2026. Serão, até lá, mais de 1 mil terawatts-hora usados, uma quantidade praticamente equivalente ao que o Japão consome anualmente. 

Tal dado acende um alerta sobre o uso da IA, que se apresenta como um facilitador, mas também um algoz para a transição energética brasileira: ao mesmo tempo que otimiza a produção de energia limpa, aumenta as emissões de gases de efeito estufa pelo seu uso, já que as estruturas que permitem o uso da tecnologia são alimentadas majoritariamente por fontes de energia de origem fóssil.

“Se os próprios servidores e data centers não utilizarem energia limpa em seus processos, de nada adianta aplicarmos essa tecnologia para otimização da nossa matriz energética atual. É uma questão que se retroalimenta: o consumo e a produção devem realmente deixar as matrizes fósseis. Sem isso, de nada adianta”, defende Coutinho, da UFRJ.

Falta de conexão

Entre as 20 nações mais bem posicionadas no Índice Global de Transição Energética (ETI, na sigla em inglês), elaborado pelo Forum Econômico Mundial, Brasil e Chile são os únicos países latino-americanos que figuram na lista das nações que mais avançaram na implementação de ações voltadas para a descarbonização.

Segundo relatório publicado em meados de junho de 2024, o Brasil subiu para a 12ª posição geral do Índice, ficando em primeiro lugar entre os países emergentes e entre todas as nações da América Latina. Em uma escala de 0 a 100, atribuída na classificação do ETI, o Brasil registrou pontuação de 65,7, ficando à frente de potências como Reino Unido (65,6), China (64,1) e Estados Unidos (64). 

A matriz energética brasileira é composta, hoje, por 88% de fontes renováveis, sendo 50,6% apenas por hidrelétricas. Isso, segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, já coloca o país em uma posição vantajosa para a aplicação de novas tecnologias nos processos de transição energética.

Além disso, no Brasil, o uso da Inteligência Artificial pelo setor energético tem um caminho já aberto pelo projeto Cidades Inteligentes. Coordenado pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), a iniciativa, iniciada no início dos anos 2020, auxilia municípios do país na instalação de sistemas interligados que misturam Internet das Coisas (IoT), Inteligência Artificial e Big Data para soluções em mobilidade urbana, segurança pública e conectividade industrial. 

Isto é, o país tem de um lado a competência e estrutura para se tornar líder na produção de energia limpa e do outro a expertise crescente no uso de Inteligência Artificial para que esta transição seja facilitada pelo uso de tecnologias emergentes. Basta querer conectar as duas pontas.

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