Já havia um burburinho de que a rua de Rejane Maria da Rosa, 63 anos, poderia inundar na madrugada do dia 3 para 4 de maio. Em outra parte do bairro, os moradores tinham iniciado a evacuar suas casas, à medida que outros diques de contenção hidrológica transbordavam. Alguns membros da família de Rejane com crianças pequenas também começaram a sair.
A moradora passou o dia anterior monitorando a situação do dique em frente à casa onde ela e outros 20 membros da família moram na cidade de Canoas — um dos municípios mais afetados pelas enchentes que deixaram 94% do Rio Grande do Sul (RS), Estado no extremo sul do Brasil, submerso.
Na última semana de abril, chuvas de centenas de milímetros no Estado começaram a elevar os níveis das cabeceiras dos rios no Delta do Jacuí. Após inundarem cidades inteiras nos vales banhados por esses rios, o fluxo de águas desceu para a região metropolitana da capital gaúcha, Porto Alegre, transbordando para as cidades. As inundações duraram quase três semanas, e só agora a água começa a baixar em algumas regiões, enquanto desce para cidades na porção Sul do Estado, para a Lagoa dos Patos, buscando vazão para o mar. Nestes municípios, as enchentes estão começando só agora.
Esta é a maior enchente já enfrentada pelo Rio Grande do Sul e um dos maiores desastres ambientais registrados no Brasil. São 467 municípios afetados (de um total de 497 cidades no Estado), com 162 mortos, 75 desaparecidos, 581,6 mil desalojados, 68,3 mil pessoas em abrigos e 2,3 milhões de pessoas afetadas, segundo o boletim da Defesa Civil divulgado às 18h de quarta-feira (22 de maio). À medida que as tempestades se deslocam, atingem também as áreas no Uruguai e na Argentina.
“Os vizinhos passavam em frente à minha janela com crianças no colo e mochilas, alguns com animais, isso aconteceu durante toda a madrugada, era inacreditável”, conta Rejane. “Por volta das 6h começamos a ficar inquietos e, em uma hora, a água subiu assustadoramente, ultrapassando dois degraus da escada de acesso à casa”.
Rejane deixou a casa com outros oito membros da família, e àquela altura já era possível ver barcos na rua. “Saímos com água pelas canelas e outros com água pela cintura. Quando chegamos na entrada do bairro, ainda não sabíamos para onde ir e fomos para a casa de parentes”.
Na noite de sábado, 4 de maio, a água já chegava no segundo andar das casas e cobria as residências com um andar. Moradores aguardavam nos telhados resgate de barco, enquanto a chuva continuava a castigar. O bairro Mathias Velho — onde mora Rejane e sua família —, foi um dos mais afetados na cidade de Canoas, ao lado dos bairros Harmonia, Rio Branco, Mato Grande, Fátima e São Luiz.
O município, que tem 347,6 mil habitantes e a 3ª maior população do Rio Grande do Sul, teve todo o setor a Oeste da BR-116 tomado pelas águas. Já o setor Leste está predominantemente seco, o que permite a operação da base da Força Aérea Brasileira (FAB) para voos de resgate e chegada da ajuda humanitária.
O Rio Grande do Sul, fronteiriço com o Uruguai e a Argentina, tem mais da metade da vegetação coberta pelo bioma Pampa. A região compartilha de signos culturais como o mate e a tradição da vida no campo, o que também dá ao povo no sul do Brasil a alcunha e gentílico de “gaúcho”. .
Em outras regiões do Estado, a passagem da água foi ainda mais devastadora. No Vale do Rio Taquari, algumas cidades já arrasadas por duas enchentes históricas no segundo semestre de 2023 foram praticamente destruídas pela nova enchente, que superou as anteriores. O recuo das águas permitiu enxergar o panorama em municípios como Roca Sales, Arroio do Meio e Cruzeiro do Sul, onde bairros inteiros desapareceram e nenhuma construção resistiu em locais próximos do rio.
Eventos climáticos extremos serão mais frequentes
O climatologista Francisco Aquino, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que o aquecimento global é o principal causador de efeitos climáticos extremos de pluviosidade. O ano de 2023 foi o mais quente já registrado na história do planeta, e os primeiros meses de 2024 superam o ano passado.
O Estado gaúcho se situa em um corredor limiar entre as zonas tropicais frias e quentes. “A onda de calor que atinge o Centro-Sudeste do Brasil tem segurado a precipitação e frentes frias no Sul. Nessa combinação, incluímos as nuvens de tempestade vindas da Amazônia”, afirma Aquino.
Em alguns locais do Rio Grande do Sul, foram medidos volumes superiores a 1.000 milímetros de chuva em uma semana — quase toda a pluviosidade de um ano inteiro. O Estado costuma registrar chuvas na média dos 1.500 milímetros por ano, de acordo com o Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS.
O geógrafo Rodrigo Menegat, que também é professor da UFRGS, observa que essa enorme quantidade de água, ao não ser absorvida pelo solo, desce em grande velocidade. “O rio deságua como um tobogã, alaga e se espalha, porque a natureza dos rios do planalto meridional rio-grandense são como canyons, o que faz com que a água tenha pouco espaço para fluir. Há uma rápida elevação do nível d’água e causa uma enorme inundação”.
Esta é a terceira enchente que o RS enfrenta em nove meses, desta vez superando a enchente histórica de 1941. Por muito tempo, este foi um marco no imaginário coletivo dos gaúchos brasileiros. Pensava-se que nunca seria superada — mas os ciclos que antes levavam centenas e às vezes milhares de anos para ocorrer, passaram a ser mais frequentes com as intervenções humanas que levaram à aceleração do aumento das temperaturas.
“Não podemos mais ver esses eventos extremos como um episódio passageiro, porque as mudanças climáticas estão em curso e tendem a se agravar neste século. Estamos assistindo às primeiras manifestações. Daqui a 50 anos, veremos outros tipos de efeitos. Temos de pensar a longo prazo”, enfatiza Menegat.
Negligência ambiental entra em debate
Um levantamento da ONG Observatório do Clima (OC) mostra que há 25 projetos de lei (PLs) e três emendas em diferentes estágios de tramitação no Congresso Nacional brasileiro que flexibilizam políticas de proteção ambiental, chamado pela organização de “Pacote da Destruição”. O PL 464, de 2019, é um dos mais sensíveis da lista.
O texto, aprovado pela Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, fragiliza toda a formação de vegetação nativa não-florestal brasileira, ao estabelecer que qualquer pessoa que tenha usado a área até 22 de julho de 2008 tem direito a ela. Na prática, o texto tira uma proteção adicional de toda a Mata Atlântica e coloca em risco metade do Pantanal, 32% do Pampa, 7% do Cerrado e partes da Amazônia.
“A legislação ambiental é concebida para garantir a proteção dos biomas e ecossistemas naturais, mas também para assegurar a qualidade de vida para as populações humanas, direitos de populações tradicionais e comunidades locais”, diz a coordenadora de políticas públicas do OC, Suely Araújo. “Além de gerar gases de efeito estufa, que são os principais causadores do aquecimento global, o desmatamento elimina vegetação nativa que, no caso de grandes enchentes, ajudaria a proteger parte das comunidades humanas”.
No Rio Grande do Sul, também houve flexibilização da legislação ambiental nos últimos anos. O governador do Estado, Eduardo Leite (PSDB-RS), apresentou em setembro de 2019 um projeto de lei (PL 431/2019) para a alteração de 480 pontos do Código Estadual do Meio Ambiente do RS, conforme reportagem do portal “Brasil de Fato”. O texto foi aprovado em dezembro daquele ano pela Assembleia Legislativa estadual (Alergs) e sancionado em janeiro de 2020 (Lei 1.5434/2020).
Uma das principais críticas de ambientalistas que se manifestaram à época foi a ausência de um debate amplo com todos os setores envolvidos: o novo código foi aprovado em 75 dias, enquanto o anterior, que datava de 2000, havia levado nove anos para ser escrito e aprovado. A Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), órgão técnico responsável pelos licenciamentos no Rio Grande do Sul, emitiu uma nota em 2019 repudiando a medida. “O que estamos vendo é a tentativa de travestir de ‘moderno’ um Código que retrocede e precariza não somente o licenciamento, mas tudo o que se refere à garantia dos valores ambientais do Rio Grande do Sul”, disse.
Outro ponto sensível foi a questão do autolicenciamento, chamada de Licença Ambiental por Compromisso (LAC), que passou a ser concedida em até 48 horas por um sistema online, segundo reportagem do jornal “O Eco”. Na época, o Ministério Público Estadual (MPE) chegou a sugerir que a LAC ficasse restrita para atividades de baixo impacto, mas a proposição não foi acolhida de imediato — o ajuste só foi feito na etapa de regulamentação.
A constitucionalidade do novo Código chegou a ser questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião, o procurador-geral da República, Augusto Aras, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) indagando dispositivos das leis estaduais.
O governador Eduardo Leite afirmou, em entrevista ao programa Roda Vida da rede “TV Cultura” na última segunda-feira (20), que as mudanças foram feitas para aumentar a proteção ambiental e que nem todos os ajustes do Código configuram mudanças nas leis, e sim “medidas para modernizar a legislação, desburocratizar e agilizar o processo de licenciamento”.
Comunidades vivem em áreas de risco
Deslizamentos e inundações são os desastres naturais que mais matam no Brasil, de acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). O órgão, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, monitora municípios com histórico de ocorrências de desastres em que foram registradas mortes e cidades com áreas de risco mapeadas pelo Serviço Geológico do Brasil.
Em 2023, cerca de 8,3 milhões de pessoas viviam em áreas de risco no país, de acordo com estudos conduzidos pelo Cemaden a partir das bases de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referentes ao Censo Demográfico de 2010.
“Muitas cidades pequenas estão construídas em zonas de risco. É preciso ter infraestrutura hidrológica bem dimensionada para os novos volumes de chuva e de cheias, além de sistemas de diques e comportas com manutenção regular”, observa o coordenador-geral de pesquisa e desenvolvimento do Cemaden, José Marengo.
O cenário no Rio Grande do Sul, contudo, mostrou que áreas que não eram consideradas de risco também foram afetadas pelas cheias que não tinham precedentes. Na capital Porto Alegre, o Lago Guaíba — onde deságuam os rios do Delta do Jacuí — superou a marca histórica de 1941 e chegou ao recorde de 5,31 metros no dia 5 de maio. A cota de inundação do Guaíba é de 3 metros, e o sistema de proteção contra cheias da capital falhou, com bombas inoperantes. A estrutura, construída na década de 1970, inclui comportas, bombas de drenagem e um muro na Avenida Mauá.
Para Marengo, a gestão do ocorrido demonstrou o completo despreparo dos governantes para lidar com os efeitos da emergência climática. Os alertas de fortes tempestades feitos por instituições respeitadas, como o MetSul e o IPH-UFRGS, foram ignorados em um primeiro momento e apenas repassados para a população quando os rios já estavam prestes a transbordar.
O especialista observa ainda que as enchentes de 2023 não foram suficientes para que os gestores tomassem precauções e estruturassem planos de emergência. Para ele, o Brasil ainda é muito reativo, habituado a atuar no pós-desastre, mas deveria insistir mais na parte de prevenção.
“A população foi pega desprevenida. A Defesa Civil muitas vezes diz que as pessoas precisam sair do local, mas não informa para onde ir. Os abrigos deveriam existir para receber as pessoas na hora dos alertas, não depois do desastre. É preciso criar a percepção de que desastres matam, para que as pessoas possam saber que precisam estar prontas”, avalia Marengo.
Justiça social precisa conduzir planos de adaptação
Atrasados em pelo menos duas décadas, os planos de adaptação das cidades à emergência climática precisam levar em conta a preservação das vegetações nativas, soluções baseadas na natureza e as populações mais vulneráveis, afirmam especialistas.
Ricardo Moretti, professor da Universidade Federal do ABC paulista (UFABC), avalia ainda que os planos de reconstrução deveriam focar em promover a reabilitação dos Direitos Humanos das pessoas afetadas. “Temos que focar nos vulnerabilizados. Se você fizer um mapa dos mais afetados, quase sempre coincide com as áreas mais vulneráveis da cidade”, observa.
O Núcleo do Observatório das Metrópoles sediado na UFRGS mapeou as regiões alagadas na região metropolitana de Porto Alegre e identificou que as áreas mais pobres foram as mais atingidas pela calamidade climática que assola todo o Estado. O levantamento divulgado no último dia 15 de maio cruzou dados de renda per capita do Censo de 2010, do IBGE, com o mapa das áreas urbanizadas inundadas pelas enchentes.
A engenheira ambiental Luciana Travassos, também professor na UFABC, reforça que é preciso olhar para as cidades do ponto de vista de justiça socioambiental. Para ela, as periferias, localizadas majoritariamente nas áreas de risco, deveriam ser prioridade.
“Nas periferias, que historicamente recebem os menores investimentos públicos, é onde temos a oportunidade de criar bairros com modelos mais sustentáveis. Custaria muito menos investir mais nas áreas onde a cidade já investiu muito pouco e que estão nas várzeas dos rios. São lugares onde há pessoas em maior situação de risco e onde há oportunidades de construção com soluções baseadas na natureza”, diz Travassos.
Futuro incerto
No Rio Grande do Sul, o futuro da população deslocada ainda é incerto. Passado o momento emergencial de resgates das vítimas das enchentes e a construção de abrigos — em sua maioria, realizados pela sociedade civil que se voluntariou com barcos e com doações —, os governos estadual e federal agora tentam estruturar rotas de atuação.
O governador gaúcho, Eduardo Leite, chegou a afirmar que o Estado vai precisar de um “Plano Marshall” para a sua reconstrução, em referência ao plano europeu no período Pós-Guerra. Em resposta, o governo do presidente Lula (PT) garantiu apoio financeiro e logístico. Além de políticas de transferência de renda para a população diretamente afetada, foram anunciados um programa de habitação popular, linhas de crédito com juros subsidiados e o perdão da dívida que o Rio Grande do Sul tem com a União por um período de três anos.
O comitê de crise, que envolve gestores estaduais e federais, agora estuda três políticas imediatas para o problema da moradia: “aluguel social” (ou seja, de baixo custo) para as famílias que conseguirem encontrar um novo local para morar; “estadia solidária”, com um incentivo financeiro para quem puder dar asilo para os desabrigados; e “cidades temporárias”, que seriam abrigos de grande porte e maior estrutura para acomodar as pessoas deslocadas até que tenham novas residências.
Até lá, milhares de migrantes climáticos que perderam tudo nas enchentes do Rio Grande do Sul esperam a sua vez em filas de doações. “Doação de roupas e calçados é complicada por conta dos tamanhos e a necessidade de casacos para enfrentar o frio. As roupas de cama, mesa e banho são quase impossíveis [de conseguir], o sujeito tem que estar com sorte. Quanto aos colchões… meus Deus, é como acertar na loteria”, conta Rejane, a moradora do bairro Mathias Velho, em Canoas, que abriu esta reportagem.
“Nossas casas estão embaixo d’água, mas nós estamos vivos, inclusive a Mandiba [cachorra da família]. Somos sobreviventes da enchente de maio de 2024”, completa. O outro cachorro da família, de nome Pretinho, não sobreviveu à inundação. Enquanto uma frente fria avança sobre o Estado, a população gaúcha agora aguarda o nível da água diminuir para limpar a lama das casas e reconstruir suas vidas.