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‘Vale do Lítio’: mineral estratégico para transição energética gera preocupações no Brasil

Comunidades residentes no entorno das minas denunciam falta de diálogo com empresas e impactos socioambientais. O Ministério Público Federal investiga quebra de direitos.

A corrida para a descarbonização da energia colocou o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, sob os holofotes da indústria mineradora. Estima-se que a região detenha a maior reserva nacional do lítio, um mineral cada vez mais requisitado no âmbito internacional, principalmente para a fabricação de baterias para carros elétricos. Indispensável para a necessária transição energética, sua extração no Brasil, no entanto, tem levantado preocupações das comunidades locais, que já sentem os impactos da indústria nos territórios.

A chegada de empresas, facilitada pelo Decreto Federal 11.120/2022, que permite as operações de comércio exterior de minerais e minérios de lítio e de seus derivados, tem mudado a rotina das comunidades. O documento foi assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, um declarado defensor da extração do mineral e abre as operações sobre o lítio para empresas multinacionais, revogando decretos anteriores que restringiam esse acesso somente por meio de agências nacionais.

Entre as reclamações de moradores de comunidades próximas às minas, estão a sensação de insegurança, superlotação dos equipamentos públicos, aumento no aluguel provocado pela alta demanda, rachaduras em casas e a poluição gerada por nuvens de poeira no entorno da lavra de mineração, que tem sido apontada como a causa problemas respiratórios. As comunidades ainda reclamam que não foram consultadas ou orientadas sobre a exploração do mineral. 

“O Vale do Jequitinhonha tem uma diversidade de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. São comunidades tradicionais. Como indígenas, temos uma visão diferente em relação ao meio ambiente e nós não fomos ouvidos sobre a mineração na região”, afirma Toá Kaninynã Pankararu, da etnia indígena Pankararu, residente de Araçuai (MG).

Nuvem de poeira é apontada como causa de aumento de problemas respiratórios por moradores. Crédito: Nicolly Carollayne Mendes do Movimento dos Atingidos por Barragens

A região tem mais de 950 mil habitantes, muitos deles representantes de povos tradicionais e ribeirinhos. Ao todo, são 55 municípios divididos nas microrregiões do baixo, médio e alto Jequitinhonha, segundo dados da Universidade Federal de Minas Gerais. 

Desde 1991, a Companhia Brasileira de Lítio (CBL) atua na região na exploração do lítio nos municípios de Araçuaí e Itinga. No ano passado, no entanto, a empresa canadense Sigma Lithium também começou as operações no mesmo território. Há ainda outras três empresas que também têm projetos para a mineração no território, são elas: Atlas Lithium (EUA), Lithium Ionic (Canadá) e Latin Resources (Austrália). 

“Pra mim foi um susto quando começou a chegar os grandes maquinários para fazer as plataformas”, diz Toá Kaninynã Pankararu. “A gente escuta as explosões como se fosse um trovão e a camada de poeira é muito alta e intensa, se espalhando pelo ar”, complementa.

Segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, comunidades tradicionais têm o direito à consulta livre, prévia e informada antes da instalação de qualquer empreendimento que afete seus territórios. A empresa foi questionada pela reportagem sobre a realização de consulta às comunidades, mas não retornou até a publicação desta reportagem. O espaço permanece aberto, caso haja manifestação.

Vale do Lítio

Há quatro anos, um Projeto de Lei Estadual visa estabelecer a região do Vale do Jequitinhonha como um polo minerário e industrial do lítio. De autoria do deputado estadual Jean Freire (PT-MG), o projeto propõe, entre outros assuntos, o incentivo à exploração do mineral, a geração de emprego e renda, a promoção do desenvolvimento de tecnologias ao setor e o compromisso das empresas em trazer benefícios para os municípios locais. 

A proposta ainda diz que as ações relacionadas à implementação do polo devem contar com a participação “de representantes dos municípios, mineradores, empresários, garimpeiros e das entidades privadas ligadas à exploração, ao processamento, à produção e à comercialização dos produtos fabricados nos municípios do polo”.

O projeto de lei ainda não foi aprovado. Ele está aguardando parecer da comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. No entanto, o termo “Vale do Lítio” já ganhou destaque no mercado internacional. Em maio do ano passado, o governador do estado, Romeu Zema (Novo) fez uma viagem para Nova Iorque para lançar na Nasdaq, a maior bolsa de valores do mundo, o projeto “Lithium Valley Brazil” (Vale do Lítio Brasil). 

Na ocasião, o político afirmou querer transformar o Vale do Jequitinhonha “no vale da tecnologia para a produção de baterias e demais produtos de valor agregado”, citando ainda a importância do lítio para a geração de energia limpa. 

Para atrair investidores, o “Lithium Valley Brazil” enumera, em sua página oficial, os benefícios jurídicos que o Brasil oferece para a exploração do metal. Entre eles estão a “exportação livre de impostos” e os “esforços do governo para desburocratizar o setor de mineração”, citando o Decreto Federal 11.120/2022, mencionado acima. 

Já neste ano, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva (PT), o Ministério de Minas e Energia anunciou o lançamento do “Programa Mineração para Energia Limpa”. A pasta estima que até 2030 serão investidos R$ 15 bilhões na produção do lítio no país. Em nota, o MME informou que o programa está em fase de elaboração e a previsão de lançamento é até o fim deste ano. 

“O MME informa que o programa, conforme já anunciado pelo ministro Alexandre Silveira, é destinado a todo o território nacional e foi traçado com o objetivo de ampliar a produção brasileira dos minerais para a transição energética, além de incentivar o desenvolvimento da indústria de processamento desses minerais”, diz comunicado, sem entrar em detalhes sobre como será esse incentivo.

Chegada de novas empresas de mineração levantam preocupação de moradores Crédito: Gil Leonardi / Imprensa MG
Chegada de novas empresas de mineração levantam preocupação de moradores Crédito: Gil Leonardi / Imprensa MG

A pasta ainda informou que pretende apoiar “o desenvolvimento de tecnologias de processamento do lítio e dos demais minerais para a transição energética”. 

“Quem vai acessar os carros elétricos? A gente sente essa tensão social. Não houve diálogo nenhum conosco, que moramos em comunidades indígenas e quilombolas. O povo não foi ouvido”, opina Toá Kaninynã Pankararu. “Estamos correndo o risco de futuramente perder esses territórios, que pertenciam aos nossos antepassados”.

A reportagem entrou em contato com a Sigma para saber se a empresa tem intenção de se pronunciar sobre o tema, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Se houver manifestação, o espaço será atualizado.

O Ministério Público Federal (MPF) abriu um inquérito para apurar as medidas adotadas pela União, pelo Estado de Minas, pelo Município de Araçuaí e por demais entidades de administração indireta da federação sobre a garantia dos direitos étnico-raciais da região. Em nota, o MPF ainda cita que está apurando as responsabilidades das mesmas entidades e também das empresas interessadas na implementação de projeto de mineração do lítio por “eventuais danos morais e materiais, individuais e coletivos” em relação os povos indígenas, comunidades quilombolas e groteiras-chapadeiras. 

Localização do Vale do Jequitinhonha - Minas Gerais, onde se pretende consolidar o “Vale do Lítio”. Crédito - www.lithiumvalleybrazil.com.br

A importância do lítio para a transição energética

Há poucos anos, a mineração do lítio era destinada a um mercado relativamente estável que atendia diferentes setores, como o farmacêutico. No entanto, com a preocupação crescente pela descarbonização energética, os holofotes da indústria de tecnologia se voltaram para o mineral, que ganhou o apelido de “ouro branco”. 

“Com a introdução da visão de substituição das frotas de carro de combustível fóssil para os elétricos, surgiu a necessidade de pensar em baterias e as pesquisas mostraram que a de lítio teve maior durabilidade e bastante sucesso em termos de aplicação industrial”, explica Giorgio De Tomi, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e dirigente do Núcleo de Pesquisa para a Pequena Mineração Responsável da USP (NAP.Mineração/USP ).

“Então, assim que, especialmente os países europeus, colocaram o compromisso de mudar 100% para carros elétricos em 2023, começou a corrida atual, com a busca de desenvolver novas minas e novos recursos de lítio para atender a demanda”.

Atualmente, o principal destino do lítio são as baterias de carros elétricos, mas ele também pode ser componente de baterias de outras matrizes energéticas, como de painéis solares ou turbinas eólicas. “A bateria de lítio é muito útil para armazenar energia em qualquer situação. Mas o que criou a corrida foi mesmo os carros elétricos”, afirma De Tomi.  

Segundo dados da Agência Internacional de Energia (IEA), a projeção é que a demanda pelo lítio aumente  871,5% até 2050 – um crescimento que se deve exclusivamente aos carros elétricos, já que o uso do lítio em outros tipos de baterias e demais fins permanecerá relativamente estável ao longo dos próximos 30 anos. 

A redução da emissão de carbono é um compromisso de vários países para limitar o aumento da temperatura média global. Assim, o lítio brasileiro pode ser um aliado para o cumprimento destas metas internacionais. 

‘Toda mineração tem que ser responsável’

Segundo De Tomi, o lítio brasileiro vem do espodumênio, um mineral encontrado em rochas – que está presente no Vale do Jequitinhonha. “O contexto geológico do lítio brasileiro é totalmente diferente [daquele encontrado nos salares]. Em função dessa diferença, as condições para extração e o próprio método são bem distintos. Como o nosso destino é fazer carbonato de lítio, o espodumênio é mais eficiente e o processamento é mais barato. Em termos gerais, as indústrias de carbonato de lítio têm preferido a extração do espodumênio”.

O espodumênio se concentra em uma estrutura específica de rocha, chamada pegmatito, que é comum em ambientes com granito. A extração pode ocorrer em lavras a céu aberto ou em regiões mais profundas da rocha, a depender da disponibilização do material. 

“O método no Brasil é fazer uma sondagem e depois abrir a mina. É muito mais fácil dessa maneira porque no salar você tem que raspar o terreno e, com isso, remove muita coisa. Então, vem o processo de beneficiamento [transformação em matéria-prima] e com ele há a necessidade de produtos químicos para que o lítio vire carbonato de lítio. Esse método é o que encarece o processo de extração dos salares”.

Independentemente do método, a extração do lítio gera impactos. De Tomi explica que prefere nomear a mineração como um processo de “mineração responsável” em substituição ao termo sustentável. “É até um pouco redundante porque toda mineração tem obrigação de ser responsável, especialmente no século 21. É um conceito simples, mas o difícil é fazer acontecer. A ideia é planejar a mina, conversar com todos os agentes – desde o governo, autoridades locais, comunidades afetadas, a força de trabalho – e cumprir o plano. Todo mundo tem que conhecê-lo, entendê-lo e estar a favor dele. Se isso é atingido, o papel da empresa ou da indústria é então cumprir o planejamento”.

Para Tádzio Peters Coelho, professor da Universidade Federal de Viçosa e coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão Mineração e Alternativas (MINAS), o histórico do Brasil na mineração peca na falta de diálogo com as comunidades. “Estamos falando do Vale do Jequitinhonha, mas podemos falar de vários locais de mineração no Brasil em que o processo decisório que envolve o trabalho pouco ou nunca consulta as pessoas que serão mais afetadas”, diz ele. 

“Percebemos uma falta de possibilidade de questionamento sobre a instalação e a expansão dos projetos. São raríssimos exemplos em que há uma efetiva consulta ou que a comunidade consegue impedir a instalação. O licenciamento é uma etapa burocrática, mas as infraestruturas para esses projetos tem todo um modal que não tem consulta nem participação das pessoas afetadas. No caso do Jequitinhonha, ainda é mais sensível pela quantidade de comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas. Isso tudo afeta a dinâmica social do território”, explica ele. 

Coelho ainda diz que a forma em que o mercado está organizado hoje transforma os países do Sul Global como exportadores de matérias-primas e que, geograficamente, é nessa região em que se concentram as riquezas minerais. “Se buscar a distribuição geográfica das minas, veremos que elas estão no Sul, assim como os seus impactos. Portanto, a gente percebe que a desigualdade se mantém. Vemos a população sofrendo os impactos da transição energética para que outra parte da população usufrua da tecnologia, que também gera pegada ambiental”.

Para ele, uma alternativa para diminuir os impactos da atividade extrativa dos minérios é, além da criação de diálogos com as comunidades, a distribuição geográfica das minas. Segundo Coelho, é comum que as empresas se concentrem em uma única área para fazer a extração, visando o aproveitamento de todo o modal de infraestrutura. No entanto, a descentralização poderia ser uma saída para diminuir consequências negativas.

“A mineradora vai gerar impacto, já que precisa extrair e retirar do subsolo os minerais. A discussão seria qual seria o ponto do impacto mínimo. E acredito que ainda estamos longe de falar sobre isso”.

Para De Tomi, a indústria deve ir além do que é protocolar para a execução da mineração. “Temos que pensar em todo mundo, porque estamos falando de pessoas. E temos os compromissos da Agenda 2030 da ONU [de Desenvolvimento Sustentável]. Não podemos deixar ninguém para trás e temos que trabalhar de verdade para isso”.

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