Reginaldo Lira Barros, 57, tinha uma plantação de cerca de 200 buritis em São Gonçalo do Gurgueia, cidade do semi-árido brasileiro, estado de Piauí. Das árvores, tirava a fruta matéria-prima para doces, sorvetes e sucos que mais tarde seriam vendidos na região. O trabalho, que era um de suas fontes de renda, teve que ser interrompido pouco depois que um projeto de parque solar chegou ao município e levou à morte as centenas de árvores que ele tinha na propriedade. O Ministério Público brasileiro, órgão responsável pela defesa de direitos dos cidadãos e dos interesses da sociedade, investiga o caso.
Autodenominado como “o maior da América do Sul em construção”, o projeto é encabeçado pela Enel Green Power, empresa responsável pelo desenvolvimento de energias renováveis do Grupo Enel. O empreendimento começou a ser construído em 2018, sendo conectado à rede nacional em 2020. As instalações estão localizadas em uma área de 12 milhões de m³, o que segundo a empresa vale a aproximadamente 1,5 mil estádios de futebol.
O projeto visa produzir energia evitando a emissão de mais de 1,2 milhões de toneladas de carbono por ano, gás de efeito estufa que está entre os responsáveis pelo aquecimento global. Mas os moradores da região relatam que o projeto se distanciou da sustentabilidade – na prática, tem danificado o solo da região e assoreado brejos e nascentes de rios, gerando impactos também socio-econômicos.
As primeiras perturbações foram sentidas durante os períodos de chuva de 2019, logo após a instação do projeto. Barros diz que os painéis estão instalados em uma região de serra. A implementação das fotovoltaicas gerou desmatamento na área e, com a retirada da vegetação nativa e a modificação do território, o solo já não está retendo as águas da chuva, provocando enxurradas nos territórios vizinhos, onde o morador tem uma propriedade. Segundo o Ministério Público do Piauí, uma visita técnica foi realizada em 6 de junho desse ano para investigar os impactos da construção.
“A água [que cai sobre] o parque solar desce para as nossas propriedades, para as nascentes dos rios, para os brejos. Matou a vegetação e os buritis, que eram importantes para uma atividade de extrativismo que fazemos na região. Os buritis servem para muitas coisas, como sorvete, suco, doce. Essa renda acabou. Só na minha área morreram 270 árvores. Não existe mais buriti”, diz ele.
O mesmo foi sentido por Alexandre Louzeiro Neto, 77, que também tem propriedade ao lado do empreendimento e viu um dos corpos d´água que cortam sua fazenda assorear, após a instalação do projeto. Ele diz que decidiu vender todo o gado na tentativa de evitar danos maiores. “Tinha um curral onde colocava o gado e passava um brejo, mas agora o gado não pode mais passar [sobre o corpo dá água]. Inclusive, quatro cabeças de gado morreram atoladas. Tinha feito um empréstimo no banco para comprar o gado, fazer o curral, reformar a cerca, mas tive que desistir. Ainda estou pagando as prestações do empréstimo, que somam R$ 24 mil”, conta ele.
Antes de vender todo o gado, Neto ainda alugou uma roça em outro município para deixar os animais. “Não pude mais criar o gado nem para poder pagar as prestações do banco, nem para me alimentar. Aqui, ao invés de comprar carne nos açougues, a gente mata o gado e come, que fica mais barato. E nem isso pude mais fazer. A gente que é aposentado com salário mínimo é duro demais que aconteça uma coisa dessas.”
Os trabalhadores dizem que a situação é sentida com mais intensidade na época de chuva. “Quando chove, aumenta o assoreamento dos rios, dos brejos. Uma das melhores nascentes que tinha lá já foi embora. Não podemos mais beber a água que tinha lá. Não sei o que vou fazer. Vou lagar minha propriedade porque não tem como trabalhar mais. Fui criado nessa função de trabalhar na roça e aprendi a construção civil, mas devido à idade, esse segundo ofício já não é tão garantido”, explica Neto.
Logo nos primeiros anos de operação do empreendimento, a empresa tentou reverter a situação. Em 2020 foram construídas barragens para conter a água que escoa do parque solar, mas, segundo os moradores, elas sempre se mostraram ineficientes. De acordo com Barros, em 2024 foram registrados três novos assoreamentos e novas erosões. “Não fizeram nenhuma drenagem correta, a água aumentou e o dano foi completo. O problema é que essa água está entrando no único rio da região, o Gurguéia, está passando por um processo de assoreamento. Ele já até ficou impróprio para consumo”, diz o primeiro morador ouvido pela reportagem, Barros.
Os moradores montaram a Associação Alto Do Gurguéia, visando mobilizar a comunidade local para exigir ações contra os impactos socioambientais do empreendimento. A primeira manifestação foi feita em 2020, “mas até hoje não tem nenhum resultado concreto”, lamenta Barros.
“As construções de barreiras que fizeram não estão sendo suficientes. Está descendo água para outros pontos que antes não eram afetados. O Gurguéia é o principal afluente do Parnaíba e ele está secando. Ele é importante para as nossas plantações. Aqui criamos gado, plantamos milho, feijão, melancia, temos várias atividades para subsistência. Tivemos que mudar a nossa forma de trabalhar e algumas pessoas saíram da região. Água é vida e a nossa acabou”, diz Reginaldo.
Segundo o morador, a Enel havia prometido a disponibilização de água potável para a comunidade por meio de poços tubulares. “Realmente abriram poços, mas é uma instalação que não é boa. Tem pouca água para as nossas necessidades. E ficou por isso mesmo.”
Neto diz que a comunidade não foi consultada nem antes e nem durante o projeto. “Nunca tinha ouvido falar em nada. Só soube que eles iam construir o parque solar quando vi o pessoal chegando para fazer isso.”
O que diz a Enel
Procurada pela reportagem, a Enel Green Power informou, em nota, que o local onde o empreendimento solar está localizado registrou “chuvas com volumes muito acima dos níveis históricos nos últimos anos” e que, devido a este fenômeno, houve “movimentação de sedimentos na região do entorno do parque”.
A empresa também confirmou as obras civis “para incrementar o sistema de drenagem do parque e reforçar a proteção de áreas localizadas fora do parque”, como resultado de um compromisso firmado com a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (SEMAR).
“As obras envolveram a construção de novas bacias de amortecimento de cheias e a melhoria das existentes, ajudando a reduzir a vazão de deságue nos córregos no momento de pico das chuvas. Também foram construídas barreiras drenantes que atuam na retenção de eventuais sedimentos que, por característica da região – que é uma área em processo de desertificação – se movimentam na área do entorno do parque”, diz nota.
A Enel ainda afirma que as ações “surtiram o efeito esperado durante os períodos de chuva” entre 2020 e 2022 e que não houve registros de transbordamentos ou alagamentos às margens dos córregos da região desde novembro de 2022.
Além disso, a Enel afirmou que contratou uma empresa especializada para realizar estudos técnicos sobre os impactos e as necessidades de compensação de moradores. A empresa informa que 135 famílias estão recebendo indenizações “baseadas em suas necessidades”. Em respeito aos danos dos brejos e rios, a empresa diz que construiu três poços de água “capazes de abastecer toda a cidade” e que mantém uma entrega mensal de água para consumo de 37 famílias desde 2020.
“A Enel também está apoiando o poder público com o intuito de garantir aos moradores o acesso contínuo a um sistema formal de água encanada e vem realizando programas de educação ambiental, voltados para o consumo correto da água, entre outras frentes de preservação na região”, finaliza comunicado.
À reportagem, Barros confirmou o pagamento das indenizações. Ele afirma, no entanto, que o valor supre necessidades apenas em relação ao início dos impactos, e não a médio prazo, como a falta de água para agricultura e consumo. Os moradores estão preparando um relatório de impactos observados no território próximo ao parque solar no primeiro semestre deste ano para entregar às autoridades.
Leia a manifestação da Enel na íntegra aqui.
Caso é investigado
O Ministério Público do Piauí (MP-PI) informou que um inquérito civil público está tramitando na Promotoria de Justiça da cidade de Gilbués com o objetivo de apurar os danos socioambientais do Parque Solar São Gonçalo.
Em nota enviada à reportagem, o MP-PI informou que no início desse ano a Promotoria de Justiça de Gilbués solicitou atuação conjunta do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do Ministério Público do Piau (CAOMA/MPPI) para verificar as medidas adotadas pela empresa, bem como os projetos de recuperação das áreas degradas.
A visita técnica realizada em junho de 2024 teve a participação de representantes da Enel Green Power e de moradores atingidos. “A Promotoria de Justiça de Gilbués/PI aguarda a confecção do relatório da nova perícia, que será encaminhado pelo CAOMA/MPPI, a fim de deliberar, acerca das medidas judiciais ou extrajudiciais cabíveis”, diz comunicado do MP-PI. Ainda não há data para conclusão do inquérito.
O Brasil e a transição energética
Desde 2020, o Brasil vê um crescimento significativo no desmatamento para a construção de empreendimentos energéticos: a área aumentou de 475 hectares para um total de 4,5 mil hectares desmatados, segundo dados do MapBiomas.
O Piauí é o quinto estado com mais áreas destruídas. À frente estão os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Bahia, respectivamente, todos na região nordeste do Brasil. O levantamento ainda aponta que a Caatinga é o bioma mais afetado pelos empreendimentos energéticos, seguido pelo Cerrado.
A implementação de fontes de energia renováveis é importante para que os países possam cumprir com metas estabelecidas no Acordo de Paris. O documento é atualmente o principal tratado que propõe medidas para frear o avanço das mudanças climáticas no mundo. Em termos práticos, o que se espera é que os governos tomem ações para impedir o aumento de 2ºC na temperatura global em relação à era pré-industrial.
O Brasil já tem uma vantagem em relação aos demais signatários do tratado, com uma matriz energética de 48% renovável, enquanto a média mundial é de 15%, segundo o Ministério de Minas Energia. No entanto, há recursos no país para aumentar ainda mais esse valor, especialmente na região nordeste, onde existe um potencial energético natural tanto para a matriz solar quanto eólica.
A exploração dessa capacidade é atrativo para frear as emissões de carbono, como explica a coordenadora do Plano Nordeste Potência, Cristina Amorim. O Plano é uma iniciativa encabeçada por coletivo de organizações não-governamentais brasileiras que desde 2020 trabalha junto a comunidades desta região do país impactadas pelos projetos de energia renovável.
“Precisamos, sim, reduzir as emissões do setor de energia e isso significa principalmente a queima de combustíveis fósseis, o transporte, e a indústria. Todos os setores devem fazer o seu papel, incluindo o de energia”, diz Amorim.
Para a coordenadora da iniciativa, no entanto, a forma como esses novos modelos são implementados deve ter atenção redobrada. “Toda tecnologia [de infraestrutura], como obras, tem impactos, mas isso não significa que o que está sendo feito está próximo do ideal. Como está sendo implementada não beneficia a [ação para enfrentar] crise climática”, diz ela.
“Os casos dos parques solares mostram que muitas vezes desmatam para poder implementar o projeto, então emite gases de efeito estufa de um lado para retirar do outro, além das inúmeras violações de direitos humanos que ocorrem nesse processo”, complementa.
Como resultado do trabalho, o coletivo lançou uma série de recomendações para empresas e governos de como fazer a implementação dessas energias renováveis no país. Em outubro de 2023, grupos do nordeste lançaram um outro manifesto pedindo por uma transição energética justa.
“Defendemos uma transição energética justa e popular que considere processos politicamente democráticos, economicamente solidários, culturalmente dialógicos e ecologicamente sustentáveis, na qual todos os saberes tenham chances iguais de expressarem as visões e práticas”, diz trecho do documento, assinado por 79 entidades.
“Essa transição tem que ser justa e democrática. Precisa de transparência, diálogo e o que observamos é que ela também pode ser um vetor para combater a desigualdade”, completa Amorim.